“É constitucional a vedação ao compartilhamento de informações prestadas pelos aderentes ao RERCT com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, bem como a equiparação da divulgação dessas informações à quebra do sigilo fiscal.”
Essa foi a tese aprovada por maioria do Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal nesta sexta-feira (5/3), no julgamento de uma ação direta de inconstitucionalidade que questionava o sigilo sobre informações prestadas ao programa de repatriação de dinheiro lícito não declarado que estivesse sendo mantido no exterior.
O voto do relator, ministro Luís Roberto Barroso, foi seguido pelos ministros Cármen Lúcia, Luiz Edson Fachin, Gilmar Mendes, Rosa Weber, Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Marco Aurélio, Luiz Fux e Nunes Marques. Ficou vencido o ministro Ricardo Lewandowski, que abriu divergência.
A norma questionada é a Lei 13.254/2016, que disciplina o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT). Para minimizar a evasão de dinheiro, a lei ofereceu condições especiais: alguém que tenha recursos de origem lícita no exterior poderia repatriá-lo submetendo-se ao pagamento de 15% sobre o montante total regularizado, a título de Imposto de Renda, mais uma multa de 100% do valor pago de IR.
Em contrapartida, a lei oferece extinção de punibilidade de determinados delitos, como falsificação documental, evasão de divisas, e lavagem de dinheiro. Além da imunidade penal, foi estabelecida a impossibilidade de uso da declaração de regularização como único indício ou elemento para fins de investigação criminal (artigo 4º, § 12) e a garantia do sigilo das informações (artigo 7º, §§ 1º e 2º). Esse último ponto era questionado na ADI.
Para Barroso, o programa não se insere na relação normal entre o Estado e os contribuintes, mas constitui uma espécie de transação, autorizada pelo artigo 171 do Código Tributário Nacional, submetendo-se a regras específicas.
“Compreendido o programa como espécie de transação, é possível estabelecer que as regras especiais de sigilo são exemplos de garantia dada a quem opta por aderir a ele. Enquanto ‘regras do jogo’, devem ser, tanto quanto possível, mantidas e observadas, a fim de assegurar a expectativa legítima do aderente e proporcionar segurança jurídica na transação”, defende o ministro.
Assim, a obrigação de sigilo sobre as informações prestadas para o programa, enquanto condição da transação, é constitucional. “A regularização de bens e direitos tratados na lei enseja remissão total das obrigações tributárias (artigo 6º, § 4º, da Lei nº 13.254/2016). É dizer: toda a tributação incidente sobre esses recursos se encerra no âmbito do próprio programa, cujo desenvolvimento é atribuído exclusivamente à Receita Federal do Brasil. Portanto, não haveria interesse no compartilhamento com as demais administrações tributárias”, completa.
Assim, segue Barroso, “as normas não violam o artigo 37, XXII, da Constituição. O texto é cristalino em remeter à lei ou ao convênio a forma de compartilhamento de cadastros e informações fiscais”.
A ADI também argumentava que a lei viola o princípio da isonomia tributária, já que a camada extra de sigilo não é concedida a outros contribuintes que também fariam jus a ela. Quanto a isso, Barroso ressaltou que os contribuintes interessados no programa de repatriação não se equiparam a outros contribuintes que não tenham dinheiro não declarado no exterior e, portanto, a equivalência não se aplicaria.
Por fim, Barroso afastou a alegação de que o sigilo violaria os princípios da moralidade, transparência e eficiência da administração pública, uma vez que acusados da operação “lava jato”, por exemplo, teriam usado o programa para repatriar recursos ilícitos. Segundo o ministro, o mau uso do programa não é suficiente para declarar sua inconstitucionalidade.
Divergência
Ao abrir a divergência, o ministro Ricardo Lewandowski concordou com Barroso quanto à natureza transacional do programa, mas fez a ressalva de que a lei é expressa ao dispor que o regime é aplicável à declaração de bens de origem lícita.
Para que a distinção fique clara, o ministro propunha que, ao final da tese, fosse acrescentado o adendo ” ressalvadas aquelas que digam respeito a recursos com origem ilícita”, de modo a não criar empecilhos à investigação de movimentação de recursos ilícitos.
Repercussão
A decisão foi bem recebida entre os tributaristas. Para Igor Mauler Santiago, sócio de Mauler Advogados, “a queixa dos estados e municípios quanto à ocultação de fatos que podem ser de seu interesse é superada pela previsão legal de repartição do valor arrecadado com a regularização. Ademais, a adesão de um contribuinte ao programa não retira aos estados e municípios o poder, que sempre tiveram, de o fiscalizarem”.
Segundo Daniel Gerber, advogado criminalista com foco em gestão de crises, compliance político e empresarial, “o STF decidiu aquilo que se esperava que fosse decidido, a manutenção da regularidade, da legalidade, do ato jurídico perfeito e, fundamentalmente, da confiança que o cidadão brasileiro deve ter em suas instituições. Se a decisão fosse contrária, nenhuma outra lei no futuro teria qualquer espécie de efeito prático”.
“Caminhou muito bem o ministro Barroso ao ponderar que os dispositivos, além de legais, estão de acordo com as determinações internacionais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre o tema”, opinou Rodrigo Rigo Pinheiro, sócio coordenador da área Tributária do Leite, Tosto e Barros Advogados. “Além disso, a manutenção do sigilo traz o mínimo de segurança jurídica aos contribuintes que tiveram a legítima confiança no legislador e na administração pública. Decidir ao contrário seria impor o caos a essa já desgastada relação.”
Tiago Conde Teixeira, tributarista, sócio do SCMD, professor do IDP e ex-professor de Direito Tributário da UnB, também comemorou a decisão. “A decisão está absolutamente correta, porque levou em conta a intenção do legislador e aquilo que estava expresso na lei. Esse sigilo não está coadunando com algo ilícito e tampouco fere a moralidade administrativa ou a questão da transparência. Isso porque a própria lei determina que a origem do dinheiro deve ser lícita.”
“O que não se pode é permitir que as regras do jogo sejam alteradas depois da partida encerrada. E era isso que pedia o partido nessa ADI: Depois de acabada a repatriação, pretendia que se alterassem as regras do jogo para se mudar a questão do sigilo, que era uma previsão expressa da lei. Então, corretíssima a decisão do Supremo, que reflete a segurança jurídica, reflete o princípio da confiança e não afugenta os nossos investidores — que confiam nas leis feitas por agente autorizado e pelo Congresso, como é o caso da chamada Lei da Repatriação”, complementou.
Daniel Corrêa Szelbracikowski, tributarista, sócio da Advocacia Dias de Souza, de Brasília-DF, mestre em Direito Constitucional pelo IDP, também defendeu a segurança jurídica da decisão. “Muitos apenas aderiram ao RERCT em função das garantias lá existentes, em especial o não compartilhamento de informações fiscais colhidas. Ademais, tais informações nem sequer teriam utilidade fiscal para estados e municípios, eis que a regularização estava vinculada à remissão de qualquer outra obrigação tributária que não fosse o pagamento de 15% de Imposto de Renda e 100% de multa.”
Para André Damiani, criminalista especializado em Direito Penal Econômico, sócio fundador do Damiani Sociedade de Advogados, o Supremo garantiu a integridade da previsão legal. “Decisão acertada porque reconheceu a obrigação do Estado brasileiro de cumprir todas as cláusulas e termos acordados com o cidadão que, voluntariamente, aderiu ao programa de repatriação previsto em lei. Nada mais óbvio. Absurdo, ilegal e imoral, seria atrair os recursos do brasileiro, taxá-los e, na sequência, dolosamente, descumprir a cláusula de sigilo que simplesmente foi determinante para a própria vinda dos recursos.”
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ADI 5.729
Luiza Calegari é editora da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 6 de março de 2021