A autorização pelo seu uso na integralização de capital social de empresas parece-nos algo arriscado, que mais complicará o já fragilizado mercado empresarial.
No fim de 2020, foram esclarecidas a utilização de criptomoedas no direito societário para integralização do capital social de empresas. Por meio do Ofício Circular SEI nº 4081, de 2020, o Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI) deu conhecimento às Juntas Comerciais de sua interpretação de que é possível a integralização do capital social de sociedades por meio de criptoativos. Apesar dos esclarecimentos prestados pelo DREI, ainda restam diversas questões a serem respondidas pelo órgão de registro.
Qual a natureza jurídica das criptomoedas? Para responder a essa pergunta, o DREI utilizou-se de conceitos um tanto quanto amplos aproveitados por outros órgãos (Banco Central, CVM, Receita Federal). Todavia, seguimos sem resposta.
A autorização pelo seu uso na integralização de capital social de empresas parece-nos algo arriscado.
A própria nomenclatura “criptoativo”, utilizada pelo DREI, induz a erro. Criptomoeda é um ativo negociado e registrado eletronicamente para a aquisição de outros bens no lugar de dinheiro – a criptomoeda é uma espécie do gênero criptoativo. O criptoativo é um ativo digital criptografado pela tecnologia blockchain negociado em ambiente digital e que possuem registros exclusivamente virtuais. Portanto, há uma necessidade de classificar o que seriam os criptoativos, para, em seguida, conceituar cada tipo de criptoativo dentro do campo do Direito.
Até o momento os conceitos usados pelos órgãos públicos trazem uma regulamentação imprecisa criando insegurança jurídica com a falta de definição adequada.
Então, quais criptomoedas podem fazer parte do capital social de empresas? No mercado, temos o Bitcoin, mais famoso entre os criptoativos, assim como o Ethereum, Tether, Ripple etc.
É importante o DREI se posicionar de forma a confirmar a possibilidade de integralização do capital social de empresas por meio de qualquer criptomoeda e qualquer outro tipo de criptoativo.
Pela lei, pode-se integralizar o capital social com criptomoedas. Entende o DREI que não há qualquer vedação legal expressa para a integralização de capital social com criptomoedas.
Nesse sentido, relembra-se a redação do inciso III do artigo 997 do Código Civil, assim como o artigo 7º da Lei das S.A., os quais determinam que as sociedades se constituem por meio de contrato/estatuto por escrito em que conste o seu capital social, o qual poderá ser formado com contribuições em dinheiro ou em qualquer espécie de bens suscetíveis de avaliação em dinheiro.
Ainda, cita o DREI a Lei da Liberdade da Econômica, a qual estabelece a presunção de boa-fé das pessoas físicas ou jurídicas no âmbito de atos praticados no exercício da atividade econômica, não devendo os membros da administração pública do país limitar a livre formação de sociedades empresariais ou de atividades econômicas.
Em suma: na ausência de vedação legal para que os criptoativos façam parte do capital de empresas, a integralização é possível e não há formalidades predeterminadas, devendo ser respeitadas as mesmas regras aplicáveis à integralização de capital com bens móveis. A omissão do DREI pode ser um tanto quanto questionável, ou, até mesmo, perigosa.
Sabe-se que, no caso do Bitcoin, a blockchain é um livro público de registro, em que todas as transações são listadas e criptografadas. Quando se inclui um imóvel no capital de uma sociedade, o cartório de registros competente realiza a averbação; quando o capital é aumentado com um carro, a sua titularidade é alterada nos documentos próprios. Então, no caso das criptomoedas, o blockchain será a forma de confirmarmos se a empresa é, ou não, proprietária do ativo? Aqui, entendemos ser impreterível o DREI comunicar o mercado como ocorrerá a formalização do capital social de empresas com esse tipo de ativo.
Outro ponto importante refere-se à variação dos criptoativos. Naturalmente, um imóvel ou um carro sofrem amortização (positiva ou negativa) ao longo do tempo, e isso é refletido no balanço patrimonial; contudo, podemos afirmar que isso acontece de forma mais rápida e dinâmica com as criptomoedas. Como funciona o registro contábil das criptomoedas no capital de empresas? Seria um ativo intangível? Sofreria impairment?
Por fim, outro questionamento refere-se à chave privada: caso essa informação confidencial seja compartilhada, dá-se acesso à criptomoeda a qualquer um que tenha posse da chave, podendo este usar o investimento como preferir. Aqui, o criptoativo parece mais ser um título de crédito “eletrônico”; todavia a segurança de capital social das empresas formado com criptomoedas nos parece ser colocada em xeque.
A existência de criptoativos no nosso dia a dia em 2021, poderá, eventualmente, trazer benefícios à sociedade brasileira (como ocorre em alguns mercados internacionais). Todavia, representam investimento de alto risco e da forma que são utilizados hoje em dia no país trazem muitas incertezas regulatórias.
Desta forma, a autorização pelo seu uso na integralização de capital social de empresas parece-nos algo arriscado, que mais complicará o já fragilizado mercado empresarial brasileiro. Além disso, ao trazer esse benefício para dentro das empresas, há necessidade de termos regras bastante claras e delimitadas para o seu funcionamento – justamente, por envolver mercado eletrônico e bens intangíveis, o mercado precisa de informações mais precisas quanto à sua utilização, para evitar fraudes e questionamentos.
FONTE: Valor Econômico – Por Muriel Waksman, 18/02/2021