O Fisco, que sempre figurou como detentor de cadeira cativa na recuperação judicial, agora detém o poder de provocar a quebra da empresa recuperanda.
Essa é uma das alterações trazidas pela Lei 14.112/2020, oriunda do Projeto de Lei (PL nº 4.458/2020), que acabam de entrar em vigor.
Ponto relevante nessa discussão corresponde ao veto do presidente da República aos dispositivos que balanceavam a inserção da decretação de falência ante o descumprimento do parcelamento tributário a determinadas medidas que ampliavam as hipóteses de regularização do passivo tributário.
Não se pode olvidar que as obrigações tributárias estão entre as mais impactantes no âmbito das empresas que se submetem à recuperação judicial. Por essa razão, clamou-se pela confirmação das medidas que traziam desoneração e alternativas para a solução do passivo tributário.
Ocorre que os vetos da Presidência da República frustraram essa expectativa.
Foi vetado o dispositivo que previa a não tributação, por meio da contribuição para o PIS e da Cofins, dos descontos obtidos pela empresa recuperanda na negociação de sua dívida. Com o veto, se a empresa obtém deságio de 50% na negociação do plano, por exemplo, esse montante caracteriza receita e deverá ser submetido à tributação. Ou seja, na prática, a redução da dívida obtida pelo contribuinte não será de 50%, já que terá de oferecer essa redução à tributação.
Também foi vetada a previsão de que as empresas em recuperação judicial poderiam utilizar o prejuízo fiscal (normalmente acumulado pelas empresas que se sujeitam à recuperação judicial) sem a limitação de 30%, para fazer frente aos débitos de IRPJ e CSLL incidentes sobre o montante da dívida que foi reduzido pelo plano de recuperação aprovado, bem como sobre a parcela do lucro líquido decorrente do ganho de capital resultante da alienação judicial de bens e direitos.
Com isso, continua a ser aplicado o critério geral para compensação de prejuízos fiscais, que estabelece o limite de 30% para sua utilização.
Com o veto, também foi afastada a possibilidade de dedução, na determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL, das despesas assumidas no plano de recuperação judicial que não tivessem sido deduzidas anteriormente.
Os impactos desses vetos são relevantes, pois os dispositivos visavam a trazer maior eficiência à recuperação judicial e à satisfação do passivo tributário para as empresas em recuperação.
Destaca-se o fato de que o Fisco, que sempre possuiu cadeira cativa na recuperação judicial, passa a ter papel relevante para o mal, já que pode (deve) requerer a convolação em falência da empresa que descumprir o parcelamento especial eventualmente celebrado.
Temos aqui mais um instrumento inserido na ordem jurídica brasileira que tem por objetivo forçar e constranger o contribuinte à satisfação do crédito tributário, em total descompasso com direitos fundamentais de índole econômica.
Vale dizer que esse poder do Fisco de buscar a aplicação da pena capital não foi inserido mediante o estabelecimento de contrapartidas, pois foram rejeitados os dispositivos constantes do projeto de lei que criavam um ambiente mais propício ao adimplemento tributário, conforme citado acima.
Mas não é só. Também consta da lei a possibilidade de decretação de falência, nos casos de constatação de esvaziamento patrimonial da devedora que implique liquidação substancial da empresa. Isso requer a análise de cada caso concreto com o intuito de se verificar se não foi reservado patrimônio suficiente à manutenção da atividade econômica e à garantia do cumprimento de suas obrigações.
Ademais, não obstante os vetos, a lei promulgada traz a possibilidade de que seja modificada a jurisprudência do STJ quanto à (in)exigibilidade da certidão de regularidade fiscal como requisito para o deferimento da recuperação judicial.
Isso porque a jurisprudência atual se formou no sentido de flexibilizar a aplicação dos artigos 191-A do CTN e 57 da Lei º 11.101/2005, e não exigir a certidão de regularidade fiscal, com fundamento na falta de um parcelamento especial (Resp 1.187.404/MT, j. 19/06/2013), o que estaria superado pela atual lei, que prevê parcelamento “especial” de até 120 meses (60 meses para contribuições previdenciárias).
Essa interpretação, todavia, ainda pode ser motivo de divergências no âmbito dos tribunais, já que o STJ possui decisões recentes afastando a necessidade da apresentação da certidão de regularidade fiscal, independentemente do aludido parcelamento especial, fazendo prevalecer a função social e o princípio da preservação da empresa (1864625/SP, rel. ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 23/6/2020).
O único ponto pretensamente positivo trazido pelo nova lei e que não foi vetado pelo presidente da República refere-se ao parcelamento da dívida tributária pelas empresas em recuperação judicial, com a modificação do texto da Lei nº 10.522/2002.
De acordo com os critérios aprovados, a empresa poderá escolher entre pagar os débitos em até 120 meses (até 60 meses, no caso de contribuições previdenciárias) ou utilizar prejuízo fiscal para fazer frente a 30% da dívida, parcelando o restante em até 84 meses.
Todavia, aqui é que reside, talvez, um dos maiores riscos para a empresa em recuperação, já que, uma vez descumprido o parcelamento especial, passa a incidir a regra prevista no artigo 73 da Lei 11.101/2005, que dispõe que o juiz decretará a falência da empresa em recuperação.
Essas hipóteses de parcelamento, contudo, não afastam a possibilidade de celebração de transação entre contribuinte e Fisco, nos termos da Lei 13.988/2020, que prevê descontos sobre multa e juros que podem chegar a 50% (70% no caso das microempresas e empresas de pequeno porte).
Uma observação se faz relevante nesse ponto. As regras acerca de parcelamento e transação previstas na Lei nº 10.522/2002 e na Lei nº 13.988/2020 tratam apenas de créditos tributários da União, de modo que aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios caberá disciplinar o tema de forma individual.
Não se olvida da necessidade da empresa em recuperação judicial ter o dever de solucionar o passivo tributário, é obvio, mas isso não pode ser feito às custas da própria sobrevivência da empresa, que possui inegável função social.
Nesse passo, as contrapartidas do Fisco que foram rejeitadas com os vetos presidenciais, não obstante já fossem tímidas para estimular a recuperabilidade do crédito tributário no ambiente da recuperação judicial, eram algo de bom, pois se propunham a tirar o Fisco de sua posição de extremo conforto e impunham alguma sorte de participação do Estado no processo recuperacional.
Daí a justificativa, no contexto do PL aprovado pelo Congresso Nacional, das contrapartidas ali previstas.
Dessa forma, o Fisco continua a ocupar sua cadeira cativa na recuperação judicial, pois é um credor cujos créditos são extraconcursais e dotados de extremas garantias.
Agora, o Fisco obtém uma nova e desproporcional garantia, eis que será aplicada a pena capital (convolação em falência) à empresa em recuperação que descumprir o parcelamento tributário, sem que ele, Fisco, tenha feito algo de positivo para contribuir com a recuperação da empresa.
FONTE: Conjur — Por Daniel Moreti, 28/01/2021