O STJ reafirmou o benfazejo uso da ação rescisória para proteger a higidez de suas posições já pacificadas, prestigiando a integridade do sistema de precedentes.
A previsibilidade das decisões judiciais e a coerência jurisprudencial são valores que vêm sendo prestigiados pelo legislador brasileiro desde antes do advento do novo Código de Processo Civil, numa incessante busca pelo êxito do binômio “segurança jurídica-igualdade” e pela transição da era da jurisprudência lotérica para a de um sistema razoavelmente previsível.
Ao julgar o REsp nº 1.722.454/RN, recentemente a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu um passo relevante nesse sentido ao admitir o uso da ação rescisória por contribuinte prejudicado por decisão de primeira instância divergente, entendimento que a 1ª Seção do STJ à época já adotava, no sentido da não incidência do ISS sobre atividade de incorporação imobiliária (EREsp nº 884.778/MT).
O STJ reafirmou o benfazejo uso da ação rescisória para proteger a higidez de suas posições já pacificadas.
No caso, o contribuinte ajuizou ação anulatória contra autuações lavradas por ente municipal que exigia o ISS em face de incorporações imobiliárias. A despeito da já então vigente tranquilidade do entendimento do STJ contrário aos interesses fazendários, editou-se sentença de improcedência contra a qual não foi interposta apelação. Ajuizada a rescisória perante a Corte Estadual, esta findou por rejeitá-la, o que ensejou o manejo do recurso especial acolhido pelo tribunal superior.
O fundamento central da decisão repousou no fato de que, quando da prolação da sentença rescindenda, a 1ª Seção do STJ já havia assentado sua jurisprudência em linha diametralmente oposta ao proclamar a impossibilidade de incidência do ISS em casos tais, na esteira do que já decidira a 2ª Turma no leading case julgado no REsp nº 1.166.039/RN.
A admissibilidade da rescisória pela recente decisão reafirma o precedente vinculante – e eventualmente ignorado por instâncias ordinárias – que a 1ª Seção fixou em 2009 no REsp nº 1.001.779/DF. Na ocasião, a Corte admitiu a ação em razão de a decisão rescindenda haver se contraposto à jurisprudência firme daquele tribunal quanto à isenção do IRPF sobre as contribuições recolhidas durante a vigência da Lei nº 7.713, de 1988, para formação do fundo de aposentadoria cujo ônus recaísse exclusivamente sobre o participante, vez que já haveriam sido tributadas na fonte quando da ultimação das ditas contribuições.
Nessa linha, o recente pronunciamento da 1ª Turma afastou a incidência da Súmula nº 343 do Supremo Tribunal Federal (STF) que inadmite o cabimento da rescisória por violação a literal disposição de lei prevista no CPC/1973 (ou por violação manifesta de norma jurídica no CPC/2015), quando a decisão rescindenda houver aplicado texto normativo de interpretação controvertida nos tribunais.
Estando a matéria de fundo resolvida pelo STJ antes mesmo do surgimento da decisão rescindenda, o óbice da Súmula nº 343/STF deixa de existir.
Ainda merece atenção o fato de que a pacificidade da matéria de mérito considerada pelo STJ não adveio de julgamento com eficácia vinculante, dado que não houve submissão do EREsp nº 884.778/MT ao rito dos recursos repetitivos. A questão, suscitada pelo ente municipal, de fato não poderia prevalecer, inclusive porque a decisão rescindenda tratada no REsp nº 1.001.779/DF foi prolatada em 2003 em descompasso com entendimento então já existente no STJ, ao passo que a sistemática dos recursos repetitivos foi inaugurada com a Lei nº 11.672, de 2008.
Vê-se, assim, que aquele precedente foi elaborado sem a exigência de que a “pacificidade jurisprudencial” repousasse em orientação vinculante, pela simples razão de que estava a analisar jurisprudência construída em período no qual ainda inexistia tal sistemática no âmbito do Superior Tribunal de Justiça.
Um dos mitos soterrados pelo julgado foi o do suposto não cabimento da ação rescisória contra sentença, que guiou o acórdão recorrido ao reputar não poder o instrumento ser usado como sucedâneo recursal, o que, em seu voto oral, o ministro relator Napoleão Nunes Maia Filho considerou tratar-se uma objeção impertinente, na medida em que a rescisória tinha “corpo de ação, mas espírito de recurso”. De fato, não há exigência de esgotamento das vias recursais próprias para ajuizamento da rescisória, cabível que é contra qualquer decisão de mérito.
Quanto à questão procedimental, também há de se destacar que no caso julgado em 2009, conquanto haja pronunciado expressamente a “inequívoca afronta ao artigo 485, V, do CPC” pela decisão recorrida, a Corte somente ordenou o retorno dos autos ao tribunal de origem para que este se pronunciasse sobre o mérito da rescisória. No recente julgamento, contudo, o STJ foi além e deu provimento ao recurso especial para, de pronto, julgar procedentes os pedidos da rescisória, desconstituindo a sentença da ação anulatória e reconhecendo a não incidência do ISS sobre a atividade de incorporação imobiliária nos casos analisados.
Assim agindo, o STJ reafirmou o benfazejo uso da ação rescisória para proteger a higidez de suas posições já pacificadas, prestigiando a integridade do sistema de precedentes, assegurando previsibilidade e isonomia aos jurisdicionados e, enfim, imunizando-os de decisões que – mesmo ausentes quaisquer elementos capazes de amparar o uso da técnica da distinção -, se afastam temerariamente de orientações consolidadas das Cortes superiores.
Valor Econômico – Por Frederico Seabra de Moura, 19/01/2021.