Modulação de efeitos foi aplicada em três casos e está prevista para outros três.
Em meio à pandemia, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) parecem estar mais sensibilizados com a situação das contas públicas. Passaram a propor com mais frequência a chamada modulação de efeitos para os casos tributários – que impede a aplicação das decisões de forma retroativa. A medida foi adotada em três casos já encerrados e proposta em outros três em andamento, o que preocupa os contribuintes por serem processos de maior impacto.
A modulação, antes, era pouco usada no Supremo. Foi adotada cinco vezes somente desde que os ministros, em 2006, passaram a admitir a medida para os recursos extraordinários. Em todos esses casos e nos atuais, nem mesmo as ações em andamento são beneficiadas.
O aumento serve como sinal de alerta para os contribuintes. Os três casos que ainda não foram finalizados, por exemplo, envolvem discussão sobre cobranças de tributos e, com a modulação, podem ter como consequência o que os advogados chama de “ganha, mas não leva”.
Para o poder público, por outro lado, a medida reduz, e muito, o prejuízo em uma derrota no STF. O Estado de São Paulo, por exemplo, envolvido em um dos processos iniciados durante a pandemia, que trata de ITCMD, garantiria R$ 2,6 bilhões – valor discutido nas ações movidas por contribuintes.
Os ministros julgam, nesse caso, a possibilidade de os Estados tributarem doações e heranças de bens localizados no exterior. O relator, Dias Toffoli, votou contra a cobrança, mas propôs que a decisão tenha efeitos somente para as transferências que ocorrerem depois da publicação do acórdão.
Significa, na prática, que aqueles contribuintes que têm ações ajuizadas sobre esse tema, apesar de reconhecidamente ter razão, perderão os seus processos e terão que pagar as quantias que foram cobradas, no passado, pelos Estados.
Toffoli tem o apoio do ministro Edson Fachin. Eles são os únicos que têm votos nesse processo. O julgamento teve início no mês de outubro, por meio do Plenário Virtual, e foi suspenso por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.
As decisões proferidas pela Corte, em regra, tem efeito ex tunc, ou seja, produzem efeitos desde o momento da edição da norma que foi declarada inconstitucional. E, nesse caso, todos os contribuintes podem, na Justiça, pedir o reembolso pelos pagamentos indevidos no passado.
Se houver modulação, no entanto, há duas possibilidades: permitir que apenas aqueles que já tinham ação em andamento sejam reembolsados – a situação mais comum – ou vetar a devolução dos valores para todo mundo até determinada data, como os ministros têm sugerido nos julgamentos realizados durante a pandemia.
Um levantamento feito pelos advogados Leonel Pittzer, Ariel Möller e Vanessa Perlingeiro mostra como isso vem ocorrendo no Supremo Tribunal Federal. A pesquisa tem fins acadêmicos e é atualizada ano a ano.
Antes da pandemia, os ministros haviam aplicado a modulação a 11 processos tributários. Em cinco, aqueles que já tinham ações em andamento também foram afetados. Esses dados são registrados desde o ano de 2006.
Já entre março e dezembro de 2020, período que vem sendo chamado de “jurisprudência pandêmica” – muito mais curto do que todo o histórico de tempo da pesquisa – os ministros determinaram a modulação em três casos e não fizeram ressalva sobre as ações em andamento.
Se considerados os julgamentos que iniciaram na pandemia, mas foram suspensos por pedido de vista, esse número aumenta. Existem pelo menos outros três processos com proposta para que a decisão, quando proferida, seja aplicada somente para o futuro.
Além do que trata do ITCMD, os ministros pretendem adotar a medida no julgamento que vai definir se os Estados podem cobrar o diferencial de alíquotas (Difal) nas vendas realizadas no comércio eletrônico ou se precisam esperar por uma lei complementar.
O relator, Marco Aurélio, e o ministro Dias Toffoli votaram contra a cobrança – dando razão aos contribuintes -, mas Toffoli sugeriu a modulação de efeitos. Ele propôs que o entendimento, se prevalecer, tenha validade somente a partir do ano seguinte ao da conclusão do julgamento.
A situação é semelhante no processo em que se discute a tributação do software. Os ministros já têm maioria formada pela incidência do ISS, o imposto municipal – e não do ICMS, o estadual – tanto para o chamado software de prateleira, comercializado no varejo, quanto para o software por encomenda, desenvolvido para atender as necessidades de um cliente específico.
Esse entendimento atente o pleito das empresas de tecnologia. Mas, dos sete ministros que votaram contra a incidência do ICMS, seis entendem que deve haver a modulação. Para eles, o marco para a aplicação do novo entendimento deve ser a data da ata do julgamento.
Tanto o processo sobre a cobrança do diferencial de alíquotas como o da tributação do software foram suspensos por pedidos de vista do ministro Kassio Nunes Marques. Ele havia recém-chegado ao Supremo quando esses dois temas foram levados ao plenário e pediu mais tempo para estudar as matérias.
“Podemos afirmar que houve uma mudança de padrão modulatório do Supremo. Isso acende a luz amarela”, diz Leonel Pittzer, chamando a atenção para o impacto que essa situação pode gerar.
A modulação de efeitos, se adotada como medida padrão, pode provocar o que o advogado chama de “inconstitucionalidade útil”. “Vai estimular a edição de leis sabidamente inconstitucionais pelos entes tributantes”, afirma Pittzer, acrescentando que haverá ainda mais judicialização.
Há preocupação ainda em relação a outros casos, pendentes de julgamento na Corte. A modulação de efeitos é um dos pontos sensíveis, por exemplo, da chamada “tese do século”, que trata da exclusão do ICMS do cálculo do PIS e da Cofins.
A decisão foi tomada em março de 2017. Em outubro daquele ano a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) apresentou embargos contra a decisão, que ainda não foram julgados. No recurso, pede que a decisão passe a valer a partir de janeiro de 2018.
O órgão alegou, dentre outros pontos, questões orçamentárias. O impacto desse caso para a União está estimado em R$ 250 bilhões – se tiver que devolver o que foi pago pelos contribuintes nos últimos cinco anos.
A modulação de efeitos foi introduzida na legislação no ano de 1999, por meio da Lei nº 9.868, que trata das ações diretas de inconstitucionalidade. Na época – e por muito tempo foi assim -, diz o advogado Ademar Borges, professor de direito constitucional, a doutrina via nesse instituto um escudo de proteção do contribuinte contra o Estado.
“Exatamente na linha do que se tem no CTN [Código Tributário Nacional]. Quando a Receita Federal muda de entendimento e essa alteração gera aumento de carga tributária, não pode retroagir e penalizar o contribuinte”, afirma.
Os entes públicos conseguiram, aos poucos, ganhar espaço entre os ministros por causa das dificuldades financeiras – especialmente durante a pandemia. Não significa, no entanto, que o STF deixou de proferir decisões, aplicando a modulação de efeitos, em favor dos contribuintes.
Em um dos casos julgados na pandemia, eles validaram normas estaduais que autorizam a glosa de créditos que os contribuintes carregam do Estado de origem por conta de benefícios fiscais não aprovados pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). Apesar de decidir de forma favorável aos Estados, os ministros proibiram autuações anteriores ao julgamento.
Valor Econômico – 21 de janeiro de 2021