A jurisdição on-line não consegue reproduzir a simbologia nem substituir a nobre liturgia da prestação jurisdicional presencial
Atualizado A utilização da tecnologia aplicada ao serviço público jurisdicional desperta reflexões, sob o viés dos limites entre as funcionalidades tecnológicas e a humanidade da jurisdição.
As atividades de gestão processual, como distribuição eletrônica de processos aos respectivos juízes ou controle de prazos processuais não geram controvérsia sobre a otimização que o aparato tecnológico provoca, mediante o auxílio de sistemas eletrônicos, ganhando em eficiência, segurança e diminuição do tempo de tramitação processual.
A jurisdição on-line não consegue substituir a nobre liturgia da prestação jurisdicional presencial
A discussão se dá em relação aos julgamentos. O livre convencimento e a subjetividade do julgador mantêm-se no mesmo “patamar” no ambiente eletrônico e no ambiente presencial, em que as partes apresentam seus recursos de argumentação, participando da sessão de julgamento com a atuação física em sustentações orais?
Ferramentas de tecnologia aplicadas ao Poder Judiciário e a realização de sessões de julgamento virtual e telepresencial são eixos interessantes para a reflexão acerca desse balizamento entre a tecnologia e a humanidade.
Sobre o tema, a realização de sessões virtuais já é admitida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) desde 2014, sob o fundamento da busca pela concretização do princípio constitucional da “duração razoável do processo” presente no artigo 5º, LXXVIII, da Constituição Federal.
Os julgamentos em ambiente eletrônico são admitidos nos tribunais estaduais e federais, no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF) e ocorrem sem a presença física dos julgadores e das partes, em sessões virtuais que têm duração de até sete dias, facultada a participação dos advogados e do Ministério Público, mediante o envio, por meio do sistema de peticionamento eletrônico, de arquivo eletrônico de sustentação oral, em formato de áudio e vídeo, nos padrões dos sistemas dos respectivos tribunais.
Iniciado o julgamento virtual eletrônico, o voto do magistrado relator é incluído no ambiente do processo judicial eletrônico e, no prazo semanal do julgamento, são incluídos no sistema os votos dos demais julgadores que compõem a turma julgadora.
A sessão virtual pode ser acompanhada pelos advogados, Ministério Público e Defensoria Pública no endereço eletrônico disponível nos sites dos respectivos tribunais da federação. Acaso as partes discordem do julgamento virtual, tem a possibilidade de manifestar sua preferência pelo julgamento presencial, pois são intimadas a externar a sua concordância (ou discordância) com a pauta digital antes da inclusão do processo na pauta de julgamento.
Com a superveniência da pandemia da covid-19 e as medidas de isolamento social, a tecnologia foi aplicada para viabilizar a migração para o atendimento digital, instituindo como forma de realização de audiências, despachos e julgamentos as sessões via plataformas Teams, Cisco e Zoom.
A Resolução nº 672 do STF, de 26 de março de 2020, deu fundamento para a massificação do uso de videoconferência nas sessões de julgamento presencial dos tribunais. Ou seja, os julgamentos “presenciais” passaram a ser “remotos”, por videoconferência, sem prejuízo da possibilidade da realização dos julgamentos virtuais, sem a participação física das partes e magistrados.
Digno de nota a rapidez como os tribunais aderiram à nova forma de prestação de jurisdição, desempenhando o tratamento digital com eficiência e, assim, mantendo o serviço público jurisdicional ininterrupto.
Olhar o ano de 2020 reforça a necessidade de se refletir sobre essa nova forma de participação de todos os atores do serviço público jurisdicional (magistrados, partes, advogados, promotores e servidores) impondo, de um lado, admirar a presteza do desempenho digital e, por outro, inevitavelmente, ponderar sobre eventual enfraquecimento do componente humano no relevante serviço público jurisdicional.
O historiador e linguista holandês Johan Huizinga, ao tratar do processo jurídico em sua obra Homo Ludens, destaca a simbologia da tribuna, sua arquitetura e mobiliário, as vestes dos envolvidos em um julgamento, as perucas dos juízes ingleses, tratando toda a indumentária como um componente litúrgico da prestação jurisdicional, afirmando que os envolvidos em ministrar a justiça “saem da vida comum” no momento em que vestem a toga ou adentram o “recinto mágico” da tribuna, pois segundo Huizinga, “todo lugar onde se ministra justiça é um verdadeiro temenos, um lugar sagrado”.
O “barrister lawyer” típico do sistema de common law, trajado em toga e peruca branca, talvez remanesça como a expressão máxima da liturgia forense, traduzindo a complexidade e dramaticidade da presença humana no enfrentamento de um julgamento nas Cortes recursais.
No direito brasileiro, a liturgia dos julgamentos presenciais foi tropicalizada, mas sem dispensar a liturgia marcada pelas vestes das becas para juízes, advogados e promotores, e as capas da indumentária dos servidores, além de marcar os limites para se adentrar à tribuna e sentir o prazer inominável de atuar no quadrante da disputa e da decisão.
O ano de 2020 solidificou a jurisdição on-line, com julgamentos virtuais e telepresenciais que trazem inegável eficiência. Mas, a jurisdição on-line não consegue (e não conseguirá) reproduzir a simbologia nem substituir a nobre liturgia da prestação jurisdicional presencial.
Evane Beiguelman Kramer é advogada e sócia do Dal Pozzo Advogados, ex- secretária adjunta da Justiça do Estado de São Paulo e professora da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie
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Valor Econômico – Por Evane Beiguelman Kramer, 08/01/2021.