Ainda existem argumentos jurídicos relevantíssimos que não foram apreciados no julgamento do PIS/Cofins sobre receitas financeiras.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), por meio do RE 1043313 (Tema 939 da repercussão geral), proclamou ser “constitucional a flexibilização da legalidade tributária constante do parágrafo 2º do artigo 27 da Lei nº 10.865/04, no que permitiu ao Poder Executivo, prevendo as condições e fixando os tetos, reduzir e restabelecer as alíquotas da contribuição ao PIS e da Cofins incidentes sobre as receitas financeiras auferidas por pessoas jurídicas sujeitas ao regime não cumulativo, estando presente o desenvolvimento de função extrafiscal”. O julgamento se deu com a análise da violação do princípio da legalidade, único fundamento apreciado no exame do aludido RE interposto pelo contribuinte ainda no início de toda discussão jurídica da matéria.
Ao nosso sentir, a interpretação conferida pelo STF sobre a questão abre precedente perigoso, porque poderá incentivar o Legislativo a delegar sua competência para que o Executivo tribute conforme a sua única conveniência. Para isso, bastará a instituição de tetos mínimo e máximo de alíquota por meio de leis, remanescendo como poder discricionário do Executivo o livre arbítrio para positivar as alíquotas efetivas, conforme livre política-financeira. Subverte-se a ordem legal pelo império das circunstâncias. Considerando a Federação, esse tipo de chancela poderá ganhar contornos ainda mais tensos em vista da guerra fiscal existente entre seus entes.
Ainda há argumentos relevantes que não foram apreciados no julgamento do PIS/Cofins sobre receitas financeiras.
De qualquer modo, e esse é o objeto do presente texto, nos parece que a discussão sobre a matéria também não chegou ao seu final. Isso porque muitos contribuintes discutem em suas ações matéria além da tratada no aludido RE.
Sobre o tema, vale a seguinte reflexão. O país, historicamente, possui memória curta. Resultado, não tem muito o costume de olhar os atos pretéritos para entender os presentes e futuros. Quando a Lei nº 10.865, de 2004, foi promulgada, o legislador não só outorgou ao Poder Executivo a prerrogativa de reduzir e “restabelecer” as alíquotas do PIS e da Cofins sobre as receitas financeiras, como também o obrigou a promover tal ato observando o princípio da não cumulatividade (artigo 195, parágrafo 12, CF).
O afirmado se dá na hermenêutica sistemática do artigo 27 da Lei nº 10.865, de 2004, que dispõe em seu caput que “o Poder Executivo poderá autorizar o desconto de créditos nos percentuais que estabelecer e para os fins referidos no artigo 3º das Leis nº 10.637, de 30 de dezembro de 2002, e nº 10.833, de 29 de dezembro de 2003, relativamente às despesas financeiras(…)”.
O parágrafo 2º do artigo 27, depois, expressa que “o Poder Executivo poderá, também, reduzir e restabelecer (…)” as alíquotas.
Ora, como se pode notar, o caput do artigo expressa que o Executivo poderá (faculdade) autorizar o desconto. Feito isso, ele poderá, também, reduzir ou restabelecer alíquotas (parágrafo 2º). Logo, sendo correto afirmar que o legislador concebeu na norma analisada uma metódica que preservasse íntegro o regime não cumulativo do PIS e da Cofins.
E não poderia ser diferente, já que o artigo 195, parágrafo 12, da Constituição Federal impõe ao legislador ordinário uma regra cuja finalidade deve ser perseguida, ou seja, o aludido dispositivo não gera uma mera regra de competência, mas uma regra instituidora de efetiva tarefa legislativa.
Aliás, nesse tocante, verifica-se o equívoco do procurador – geral da Fazenda Nacional que sustentou no STF que a redução a zero das alíquotas ocorreu, no pretérito, por um afago ao contribuinte (e que este não reclamou). Isso porque, conquanto as alíquotas tenham de fato sido reduzidas, no mesmo texto legal foi retirado do contribuinte o direito ao creditamento das despesas financeiras. Ou seja, o legislador deu um benefício em detrimento do desconto que existia e fez isso porque, como visto, outorgou competência ao Executivo exatamente para calibrar a tributação.
O “restabelecimento” da alíquota sem o contraponto de se preservar o regime não cumulativo, desse modo, nos dá nítida impressão de que a exigência hoje viola o artigo 195, parágrafo 12, da Constituição. Tema que, repisa-se, não foi apreciado no referido julgamento do STF.
A comprovação sobre a violação ao regime não cumulativo pela exigência fiscal está ainda no fato de que os artigos 10 e 11 da Lei Complementar (LC) nº 95, de 1998, expressam que o parágrafo é a disposição secundária de um artigo e, portanto, não pode ser lido sem a conexão com o caput do dispositivo legal.
Um exemplo que facilita entender: se o caput de um artigo de edital de concurso dispõe que o candidato será aprovado caso tenha nota 7 em uma disciplina e o seu parágrafo 1º expressa que ele terá, também, que pontuar 7 em outra disciplina, fica claro que não atendido um ou outro dispositivo, o candidato será reprovado.
Assim sendo, a leitura do parágrafo 2º do artigo 27 da Lei nº 10.865, de 2004, que acabou sendo feita pelo Plenário do STF, se deu em total desconexão com a sistemática elaborada pelo próprio legislador, fazendo com que o aludido parágrafo 2º se transformasse em autêntico artigo autônomo (27-A), o que é vedado.
Toda a questão acima deve ser apreciada também pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) já que envolve questão infraconstitucional na órbita da LC nº 95, de 1998, e conforme precedente no sentido defendido (REsp 1314615/RS) quanto a sistematização das leis.
Por fim, todo raciocínio posto até aqui também permite identificar que os contribuintes devem discutir, se ainda não o fizeram, o direito ao crédito das despesas financeiras diante do fato de que o princípio da não cumulatividade deve ser respeitado como imposto pelo legislador.
Concluímos, desse modo, que o julgamento realizado pelo STF não teve o condão de esgotar a discussão da matéria, porquanto ainda existem argumentos jurídicos relevantíssimos que não foram apreciados.
Valor Econômico – Por Brunno R. Lorenzoni e Guilherme Elia C. Silva, 11/01/2021.