Dia após dia a pandemia da Covid-19 vem crescendo vertiginosamente entre nós. Assistimos à iminência do sistema sanitário nacional colapsar e as pessoas agonizam sufocadas sem contarem com o socorro do poder público. Os médicos, encurralados, desesperam-se diante da “escolha de Sofia”.
A malha pública de saúde provou que não tem condições de suportar moléstias dessa envergadura. Há urgência em medidas que atenuem esse quadro.
Ademais, dirigentes públicos declararam que o auxílio financeiro federal contido no LC 173/2020 se revela insuficiente para atender às demandas de saúde.
Há quem profetize o surgimento de outras ondas da Covid-19, ceifando vidas de milhares de pessoas. Muitos cientistas apontam a probabilidade de num curto espaço de tempo outras pandemias devastadoras aparecerem, talvez com ímpeto maior da que agora se alastra no planeta [1].
O Brasil precisa estar preparado para enfrentar a crise atual e apetrechar-se da estrutura sanitária necessária para futuras — e prováveis — epidemias.
Para além dos mínimos percentuais da LC 141/2012 a serem aplicados na saúde, há outras fontes de financiamento previstas no artigo 198, §1º, da CF/88.
Assim, duas medidas emergem para amenizar este cenário: a obtenção imediata de recursos para fazer frente ao estágio atual da saúde pública e a efetivação de investimentos em médio prazo a fim de deixar o país em condições minimamente adequadas para enfrentar as pestes do século XXI.
Têm a Constituição da República e o sistema tributário um paliativo para esta situação: através de lei complementar, criar empréstimos compulsórios, nos moldes do artigo 148 do CTN, seja para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública (entre outras causas), seja para absorver investimentos públicos de caráter urgente e de relevante interesse nacional.
No primeiro caso, a lei vigoraria ainda em 2020, de sorte que os recursos poderiam ser arrecadados imediatamente, por ser exceção ao princípio da anterioridade, no sentido de suplantarmos a fase crítica que passamos.
No segundo caso, como se trata de antecipação de investimentos feitos a curto e médio prazos, os recursos seriam coletados a partir do próximo ano, direcionados para combaterem futuras epidemias, usados na pesquisa, produção e aquisição de vacinas, testagens em massa, construção de unidades hospitalares, compras de equipamentos de UTI e contratação de profissionais, entre outras prioridades.
Quanto à saúde pública, uma seção inteira constitucional é dedicada a esse tema, com dispositivos inscritos nos artigos 196 e seguintes, cuja responsabilidade pelo seu bom andamento é atribuída ao Estado e à sociedade organizada.
Não se perca de vista o mandamento constitucional que indica ser a saúde direito de todos e dever da União, dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos municípios. Constitui ônus dos entes estatais executar medidas que visem à boa administração da saúde pública do país, máxime para proteger aquelas camadas da população mais desassistidas, incapazes economicamente de terem um plano assistencial particular.
Não há dúvidas, portanto, que a responsabilidade pela saúde pública é compartilhada entre os entes federativos, cada um deles necessitando de verbas para cumprirem integralmente o seu papel social.
Para não perdermos a guerra contra o coronavírus, é preciso que mais recursos sejam carreados para o erário, na tentativa de municiar seus titulares do melhor aparelhamento de suas estruturas sanitárias. Nesse propósito, o empréstimo compulsório configura uma potente arma em nosso favor.
É preciso que o Estado brasileiro adote verdadeiramente o chamado federalismo cooperativo, emoldurado no conjunto sistemático do Título I da CF/88, a partir do qual, em face do entrelaçamento de atribuições e competências, os entes estatais intensificam a colaboração recíproca, ajudando-se na consecução e manutenção dos pilares da cidadania brasileira.
Em leading case publicado há quatro anos, o STF [2], na sua composição atual, debruçou-se acerca da análise da repartição das receitas. Nele os ministros ressaltaram a necessidade de prestigiar-se o federalismo de equilíbrio. Em nome de todos os votantes, traga-se a lume as palavras do ministro Luiz Fux:
“E nem poderia ser diferente em um país como o Brasil, marcadamente reconhecido pelas desigualdades regionais, e que conta com a quinta maior extensão territorial do mundo e mais de cinco mil Municípios. Essas disparidades regionais podem e devem ser compensadas através das participações na arrecadação federal, justamente pela sua natureza incondicionada e por representarem recursos próprios dos entes subnacionais desde o seu surgimento. Ademais, as participações no produto da arrecadação aparecem como um importante instrumento de cooperação entre os entes, seguindo cada vez mais a tendência mundial de flexibilização na distribuição de recursos, a fim de promover uma maior integração entre as unidades que compõem a Federação” (grifo do autor).
Nesse sentido, se a União optar por instituir os empréstimos compulsórios, a depender do pressuposto constitucional que esteja adotando e dentro do espírito de cooperação e solidariedade, haverá de repartir o produto arrecadado entre as entidades politicas, cujos critérios de distribuição deverão estar previamente estabelecidos na própria lei complementar. Eis as razões:
Em primeiro lugar, porque a humanidade respira novos ares, em que mais do que nunca o sentimento de solidariedade social, imanente à sociedade brasileira e consagrado no inciso I do artigo 3º da CF/88, mereça ser cultuado.
Em segundo lugar, porque o federalismo de equilíbrio constitui a melhor fórmula para dotar financeiramente as estruturas sanitárias federais, estaduais e municipais, sem depender de tratativas políticas para negociar com o poder central o envio de recursos para o financiamento da saúde pública do país.
Em terceiro lugar, porque todos os entes federados se valem de recursos seus para promoverem ações na área da saúde, sendo esta uma obrigação constitucional a eles imposta e um direito inarredável do cidadão brasileiro.
Em quarto lugar, porque o empréstimo compulsório traduz um tributo que se caracteriza pela extraordinariedade, a produzir efeitos até que os objetivos perseguidos com a sua criação sejam atingidos.
Dado seu caráter excepcional e variado, o constituinte não teria critérios concretos para fixar percentuais fixos na distribuição equitativa entre a federação. Cada empréstimo compulsório pode proporcionar arrecadações diferentes, dependendo da tipologia da tributação e da causa remota que o justificou — calamidade pública, guerra, sua iminência ou o tipo de investimento urgente e relevante de interesse nacional. Cada caso irá apontar a proporção recomendada para distribuição dos recursos entre os entes federados.
Não seria de bom alvitre alterar na Constituição Federal percentuais de repartição do empréstimo compulsório cada vez que surgisse a necessidade de criá-los, a justificar emendas toda vez que fosse implementado. A partilha apontada nos artigos 157 e seguintes da Carta Republicana está longe de configurar uma previsão cerrada e exaustiva.
Em quinto lugar, porque inexiste proibição no texto constitucional para que a lei crie outras formas de repartição de receita, inclusive os empréstimos compulsórios, à vista da interpretação sistemática que se dá aos seus dispositivos e às missões assumidas pelas pessoas políticas, tais como a que faz compartilhar as responsabilidades no segmento da saúde. O próprio parágrafo único do artigo 148 constitucional [3] manda que os recursos arrecadados com estes tributos sejam vinculados à despesa que o fundamentou.
Destarte, é seguro afirmar que, caso a União resolva criar os dois empréstimos compulsórios referidos anteriormente, terá que fazer a distribuição das cotas-parte cabíveis para as demais entidades estatais, pois do contrário estará ignorando o objetivo republicano da solidariedade social, abalando o pacto federativo nacional alicerçado na cooperação e desequilibrando os ônus constitucionais assumidos entre os entes na área da saúde.
[1] https://www.bbc.com/portuguese/geral-52389645
[2] RE 705.423-SE, julgado pelo Plenário 23.11.2016
[3] “A aplicação dos recursos provenientes de empréstimo compulsório será vinculada à despesa que fundamentou sua instituição”.
Por Rodrigo Spada e Vladimir Miranda Morgado
Rodrigo Spada é auditor fiscal do Estado de São Paulo, presidente da Febrafite (Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais) e da Afresp (Associação dos Agentes Fiscais de Rendas do Estado de São Paulo). É formado em Engenharia de Produção pela UFSCAR, em Direito pela Unesp e possui MBA em Gestão Empresarial pela FIA.
Vladimir Miranda Morgado é auditor fiscal do Estado da Bahia, diretor jurídico do Instituto dos Auditores Fiscais do Estado da Bahia (IAF) e doutor em Ciências Jurídicas e Políticas pela UAL-UFPE.
Revista Consultor Jurídico, 27 de junho de 2020.
https://www.conjur.com.br/2020-jun-27/spada-morgado-emprestimos-compulsorios-crise-covid-19