Desde cedo se aprende, em matéria de direito processual-tributário, que a via do Mandado de Segurança, excepcional por natureza (rito, requisitos, polo passivo, efeitos de sentença, recursos cabíveis e outras particularidades não aplicáveis a outros tipos de demanda), não tem cabimento em matéria de restituição de tributo pago indevidamente ou a maior. A matriz de tal proibição encontra-se principalmente nas Súmulas 269 e 271 do STF.[1]
Ambas as Súmulas foram publicadas em dezembro de 1.963 e, por muito tempo, não suscitaram qualquer questionamento ou interpretação mais aprofundada quanto à aplicação ou alcance, haja vista que, até 1991, a restituição de valores, salvo hipóteses excepcionalíssimas (tais como alguns créditos de IPI ou de ICMS, conforme disposições esparsas da legislação ordinária), obedecia à penosa via da repetição de indébito e consequente pagamento via precatório.
Em dezembro de 1.991 sobreveio a Lei n. 8.383, cujo artigo 66 introduziu, no âmbito federal, a figura da compensação tributária enquanto modalidade de restituição de valores e extinção de obrigação tributária vincenda ou mesmo vencida. A Medida Provisória n. 66, de agosto de 2.002, posteriormente convertida na Lei n. 10.637/02, modificou substancialmente o regime da compensação, mediante a instituição do regime de declaração apresentada pelo contribuinte. Esse é o procedimento que, com algumas variações, subsiste até a atualidade.
A partir disso, os Tribunais passaram a acolher o entendimento de que, uma vez reconhecido, judicialmente, indébito a favor do contribuinte, pode ele optar pela forma de recebimento: via pagamento mediante precatório ou compensação. Esse entendimento está consolidado na Súmula/STJ n. 461: “O contribuinte pode optar por receber, por meio de precatório ou por compensação, o indébito tributário certificado por sentença declaratória transitada em julgado”.
Por algum tempo, o direito reconhecido na referida Súmula limitou-se às ações de rito ordinário, em que a expedição de precatório sempre foi plena e naturalmente admitida, seguindo o iter comum a esse tipo de demanda, dividida em fases de conhecimento e execução (ou “liquidação”, “cumprimento de sentença” etc.), culminando, assim, com a requisição de pagamento do Poder Judiciário à entidade de direito público competente, nos termos do art. 100 e demais disposições aplicáveis.
Ao longo dos últimos anos, contudo, vem crescendo a aceitação, que antes parecia inviável, de se reconhecer, também na via estreita do Mandado de Segurança – que possui inequívoca vantagem em relação à via ordinária (sobretudo a tramitação mais célere e a ausência de condenação em sucumbência no caso de denegação da ordem) – a possibilidade de o contribuinte optar em receber o indébito reconhecido judicialmente mediante compensação ou via precatório.
À primeira vista, a possibilidade de escolha não parece apropriada porque, em regra, o recebimento via compensação é muito mais célere. Basta ao contribuinte, após o trânsito em julgado da decisão judicial, habilitar o crédito administrativamente perante a Receita Federal e, na sequência, efetuar sponte propria o encontro de contas, mediante entrega da declaração (“PER/DCOMP”) por meio digital, sujeitando-se, a partir daí, à homologação ou rejeição no prazo de 5 anos.
O efeito caixa, portanto, é imediato, de modo que, a princípio, não haveria que se cogitar do recebimento mediante precatório, sujeito a prévia quantificação judicial dos valores, submissão aos recursos cabíveis e, quando apurado em definitivo o montante restituível, a expedição de precatório para pagamento no prazo previsto na Constituição.
No entanto, a experiência empírica tem demonstrado que, em algumas situações, ou diante de circunstâncias específicas do contribuinte, pode ser mais vantajoso, ou mesmo constituir-se em única via possível, o recebimento via precatório.
Nesse sentido, há casos em que, quando do trânsito em julgado da decisão concessiva da segurança, após longos anos de tramitação do writ, o contribuinte não apresenta mais débitos passíveis de compensação, ou os apresenta em volume em que a absorção dos créditos levaria muitos anos até extinção completa.
Considerando a posição oficial da Receita Federal no sentido de que o contribuinte tem que esgotar (e não apenas iniciar) a compensação no prazo máximo de 5 anos, descontado apenas o período em que se aguardou a Habilitação, bem como acerca da impossibilidade de solicitar a restituição no âmbito administrativo, porque isso supostamente feriria a ordem de pagamento prevista no art. 100 da CF[2], a compensação, eventualmente, pode não ser vantajosa ou até mesmo revelar-se inviável (muito embora esses entendimentos exteriorizados na Consulta possam ser questionados judicialmente).[3]
Há casos, ainda, em que por motivos financeiros pode ser mais vantajoso ao contribuinte, tão logo ocorra o trânsito em julgado ou mesmo antes dele, ceder o seu crédito a terceiro ainda que com algum deságio, próprio a esse tipo de operação. Enquanto a legislação proíbe expressamente a compensação de débitos próprios com créditos cedidos por terceiros[4], a cessão da titularidade ativa ou do próprio precatório, independentemente da anuência da Fazenda Pública, tem sido regularmente admitida pela jurisprudência.[5]
Isso sem contar, ainda, o fato de que, no caso de compensação rejeitada pela Receita Federal, ao contribuinte é atribuída multa de 50% sobre o valor do débito não homologado. Ainda que a penalidade seja questionável[6], fato é que, embora possa parecer paradoxal, um ato (compensar) oriundo de uma decisão judicial definitiva favorável ao contribuinte, ao invés de tornar-se o último estágio de um procedimento destinado à recuperação de valores pagos a maior ou indevidamente, pode tornar-se o início de um contencioso fiscal.
Tome-se como exemplo a questão relacionada à exclusão do ICMS das bases de cálculo do PIS e da COFINS. Inúmeros contribuintes obtiveram decisões finais proferidas em Mandados de Segurança e, assim, estão aptos a habilitar o crédito e posteriormente operacionalizar a compensação.
Todavia, a Receita Federal, na Solução de Consulta COSIT n. 13/2018, manifestou entendimento no sentido de que o ICMS a ser excluído das bases do PIS/COFINS é o ICMS pago e não o ICMS destacado, o que enseja, na maior parte dos casos, em redução substancial do crédito do contribuinte. Se o contribuinte compensar integralmente os valores (considerando o ICMS destacado), pode sofrer a rejeição da homologação e imputação de multa, (re)iniciando uma discussão que se supunha encerrada.
Em casos como esse, o recebimento via precatório pode ser uma opção, porque o contribuinte deve promover o cumprimento de sentença na forma dos arts. 534/535 do CPC e caberá ao juiz definir os valores a serem objeto de pagamento. Evidentemente que, em termos de celeridade, é uma opção menos vantajosa, por conta do tempo necessário entre a definição do montante até a expedição e respectivo pagamento do precatório. O risco financeiro, no entanto, fica afastado.
Quanto à possibilidade de expedição de precatório na via do Mandado de Segurança, interessante notar que surgiu a partir de ações ajuizadas principalmente por servidores públicos em matéria de vencimentos. Uma vez transitada em julgado a decisão concessiva da segurança, pleiteava-se, nos próprios autos, a expedição de ofício ao órgão responsável para pagamento imediato dos valores, ao que os Tribunais – STF, em especial – recusaram tal medida, sob o fundamento de que isto implicaria violação à ordem cronológica prevista no texto constitucional.[7] No entanto, ao invés de devolver a matéria para a via ordinária, admitiu-se, nos próprios autos do Mandado de Segurança, a expedição de precatório.
A questão atualmente encontra-se pacificada em razão da decisão proferida no RE n. 889.173 (Min. Luiz Fux, DJe 14/08/2015), sob o regime de repercussão geral, no qual se reafirmou a tese de que o pagamento de valores decorrentes de sentença concessiva da segurança sujeita-se à expedição de precatório.
A própria lei atual do Mandado de Segurança (12.016/09) prevê que “o pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias assegurados em sentença concessiva de mandado de segurança a servidor público da administração direta ou autárquica federal, estadual e municipal somente será efetuado relativamente às prestações que se vencerem a contar da data do ajuizamento da inicial”, de modo que a via do writ, em si, é plenamente compatível com demandas que tenham por objeto reparação pecuniária.
Não tardou para que tal entendimento viesse a ser admitido para questões distintas daquelas envolvendo vencimentos de servidores públicos.
Em matéria de compensação tributária, já existem julgados do Superior Tribunal de Justiça admitindo que, à opção do contribuinte, o recebimento do indébito possa ser feito mediante precatório.[8] Existe precedente, inclusive, que rejeitou, por falta de interesse de agir, pleito formulado em ação de repetição de indébito ajuizada por contribuinte para executar crédito já reconhecido em ação mandamental, justamente por entender que “a sentença do Mandado de Segurança (Súmula 213/STJ) é titulo executivo judicial (…).”[9]
Relevante notar, desse mesmo precedente, importante observação no sentido de que “nesse caso, não incide a restrição prevista no art. 14, §4º, da Lei 12.016/2009, que restringe o pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias assegurados em sentença concessiva de Mandado de Segurança a servidor público da administração direta ou autárquica federal, estadual e municipal apenas às prestações que se vencerem a contar da data do ajuizamento da petição inicial.”
A ressalva é importantíssima porque as ações de compensações envolvem, via de regra, pagamentos efetuados antes de sua propositura (além daqueles efetuados durante o trâmite da ação, caso não seja requerida e/ou obtida liminar para suspender a exigibilidade das parcelas vincendas do tributo questionado), respeitado o prazo prescricional de 5 anos. Não haveria sentido, nesse contexto, limitar a expedição de precatório apenas quanto às parcelas que se vencerem após a propositura do writ, remetendo a outras vias o recebimento das quantias pretéritas. Afinal, ou bem se considera – como a jurisprudência atual admite – que o pagamento mediante precatório é compatível com a via do Mandado de Segurança ou bem não se considera. Não há discrimen razoável que permita cindir o pagamento via precatório apenas com relação às parcelas pagas partir da propositura da ação.
No âmbito do TRF-3ª Região também há precedentes, oriundos de ações relativas à compensação de tributos, admitindo a execução/cumprimento de sentença, sob o fundamente de que “está consolidada a jurisprudência do C. STJ no sentido de que a decisão concessiva da segurança, transitada em julgado, constitui título executivo judicial em relação aos valores indevidamente recolhidos”[10], embora ainda subsistam julgados no sentido de que “na hipótese como a dos autos, em que o direito do contribuinte foi reconhecido em ação mandamental, a satisfação/concretude desse direito, seja por meio de compensação ou pela repetição, somente pode ser realizada administrativamente.”[11]
Conclusão
A compensação no âmbito administrativo, sem dúvida, ainda é a via mais célere para o recebimento de valores assegurados por decisão judicial concessiva da segurança. Contudo, mesmo quando amparada em decisão judicial definitiva, a compensação, dependendo da situação específica do contribuinte, pode tornar-se inviável ou ensejar riscos – não homologação e consequente imposição de multa são os principais, o que implica a reabertura da via contenciosa (administrativa e, eventualmente, judicial).
Como forma de afastar por completo qualquer risco, surge a via alternativa do recebimento via precatório nos autos do próprio Mandado de Segurança, como vem admitindo a jurisprudência. É um caminho mais demorado mas, em contrapartida, uma vez definidos os valores por decisão judicial irrecorrível e expedido o precatório, o contribuinte fica imune a qualquer risco e a questão pode ser considerada definitivamente encerrada.
[1] 269: “O mandado de segurança não é substitutivo da ação de cobrança”.
271: “Concessão de mandado de segurança não produz efeitos patrimoniais em relação a período pretérito, os quais devem ser reclamados administrativamente ou pela via judicial própria.”
[2] Esses dois entendimentos foram ratificados na recém-publicada Solução de Consulta n. 239/COSIT (DOU 27/08/2019).
[3] Com relação à questão do prazo de 5 anos, há precedentes do STJ em sentido contrário ao entendimento da Receita Federal, isto é, admitem que o prazo seja apenas para iniciar (e não esgotar) a compensação: RESP n. 1.480.602, Min. Herman Benjamin, j. 16/10/2014; AgRg no RESP n. 1.469.926, Min. Humberto Martins, j. 13/04/2015; e RESP n. 1.469.954, Min. Og Fernandes, j. 18/08/2015. Há precedente, também, que admite o pedido de restituição na via administrativa, após o reconhecimento do indébito na via judicial (STJ, RESP n. 1.642.350, Min. Herman Benjamin, j. 16/03/2017.
[4] Lei 9.430/96, art. 74, §12, II, “a”.
[5] RESP repetitivo n. 1.119.558, Min. Arnaldo Esteves de Lima, j. 09/05/2012 e RESP repetitivo n. 1.091.443, Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 02/05/2012.
[6] O tema teve repercussão geral reconhecida (RE n. 796.939, Rel. Min. Edson Fachin), com pauta de julgamento designada para 21/11/2019. No âmbito do TRF-4ª Região, os dispositivos que disciplinam a multa foram declarados inconstitucionais (Arg. Inconstitucionalidade n. 5007416-62.2012.404.0000, Des. Luciane Amaral Corrêa Munch, j. 28/06/2012). No TRF-3ª Região há decisões no sentido da ilegitimidade da exigência. Dentre outras: Ap. n. 0014896-42.2012.4.03.6100, Des. Consuelo Yoshida, j. 20/06/2013 e AI n. 0013414-89.2013.4.03.0000, Des. Marli Ferreira, j. 06/11/2014.
[7] “Se – como assentado pelo Tribunal – o caráter alimentar do crédito contra a Fazenda Pública não dispensa o precatório, nem a letra nem as inspirações do art. 100 CF permitiriam que o fizesse a circunstância acidental de ser ele derivado de sentença concessiva de mandado de segurança.” (RE n. 334.279-7, Min. Sepúlveda Pertence, DJ 20/08/2004)
[8] AgInt no RESP n. 1.778.268, Min. Mauro Campbell Marques, DJe 02/04/2019; RESP n. 1.596.218, Min. Humberto Martins, DJe 10/08/2016; AgRg no RESP n. 1.176.713, Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 07/10/2015; RESP n. 1.212.708, Min. Herman Benjamin, DJe 09/05/2013.
[9] AgRg no RESP n. 1.504.337, Min. Herman Benjamin, DJe 06/04/2015.
[10] Emb. Decl. na Apel. Cível n. 0009081-59.2015.4.03.6100, Des. Souza Ribeiro, j. 07/11/2017. No mesmo sentido: AI n. 0029401-97.2015.4.03.0000, Des. Antônio Cedenho, j. 20/09/2017.
[11] Apel. Cível n. 0000871-95.2015.4.03.6107, Des. Marli Ferreira, j. 01/08/2019.
Por Luís Henrique da Costa Pires
Luís Henrique da Costa Pires é advogado no Dias de Souza Advogados Associados e mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).
Revista Consultor Jurídico, 17 de setembro de 2019.