Brasileiros que mantinham dinheiro não declarado no exterior e, há pouco mais de dois anos, aderiram ao Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT) poderão ser intimados a comprovar, por meio de documentos, a origem de tais recursos. Aqueles que não conseguirem demonstrar que os bens são oriundos de atividade econômica lícita correm o risco de exclusão do programa – o que pode acarretar complicações penais.
Essas intimações não serão, no entanto, feitas de ofício, para todo e qualquer contribuinte que tenha aderido, em uma das duas fases, ao que ficou conhecido como o regime da repatriação, afirma o subsecretário de Fiscalização da Receita Federal, Iágaro Jung Martins. Ele diz que estão relacionadas ao que chama de “procedimentos de gestão de risco”, casos em que há indícios de irregularidades.
Martins compara a situação ao que ocorre com o Imposto de Renda da Pessoa Física. O contribuinte faz a declaração sem apresentar, por exemplo, comprovação de consultas médicas. Isso não quer dizer, porém, que tais documentos não possam ser exigidos em um momento posterior, caso o Fisco entenda necessário.
“Será a mesma coisa em relação ao RERCT. Todo o procedimento de adesão foi digital. Naquele momento não havia como juntar nenhum documento”, diz Martins. “Mas é evidente que a Receita pode pedir para que ele [o contribuinte] comprove que preenche os requisitos do regime. O RERCT só se presta a recursos de origem lícita. Não pode se tratar de tráfico de drogas, corrupção, terrorismo. Então, se for necessário, abriremos um procedimento e o contribuinte terá que provar”, acrescenta.
No meio jurídico, no entanto, esse não era um posicionamento tão evidente. A informação da Receita sobre a possibilidade de o contribuinte ter que comprovar a origem dos recursos objetos do RERCT foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) da última semana, por meio do Ato Declaratório Interpretativo nº 5, e desde lá vem sendo alvo de contestação.
Advogados têm classificado a mudança como “pegadinha” e “ato desleal” contra o contribuinte. Isso porque havia o entendimento, a partir de textos da própria Receita Federal, de que, para os casos do RERCT, não seriam exigidos documentos relacionados à origem dos recursos.
“A Receita está modificando o Perguntas e Respostas da Dercat [Declaração de Regularização Cambial e Tributária], que era a base para esclarecer os procedimentos operacionais do processo de adesão do regime. Estamos falando de adesões que foram feitas em 2016 [primeira fase], ou seja, de um jogo que já acabou”, pondera o advogado Alessandro Fonseca, do escritório Mattos Filho.
A Receita, por meio do Ato Declaratório nº 5, modificou o item 40 do Perguntas e Respostas ao qual o advogado se refere. Esse texto havia sido publicado no site da Receita, na época das adesões ao RERCT, para instruir os contribuintes sobre como interpretar a lei que instituiu o regime (nº 13.254).
A versão original estabelecia que o contribuinte deveria declarar a origem do bem, mas sem a obrigatoriedade de comprovação. “O ônus da prova de demonstrar que as informações são falsas é da Receita Federal do Brasil”, dizia o texto.
Essa resposta ainda consta lá. Só que agora, com a interferência do Ato nº 5, existem três novas notas complementares. Na primeira delas, a Receita afirma que a desobrigação de comprovar a origem, por meio de documentos, valia somente para o momento da adesão. Na segunda, estabelece que o ingresso e a permanência no regime poderá ser objeto de fiscalização e na terceira informa que concederá “prazo razoável” para que o contribuinte apresente os documentos depois que for intimado.
“Estamos diante de uma pegadinha contra o contribuinte. A Receita atrai as pessoas para o programa com base em um critério e depois inventa outro completamente diferente”, critica o advogado Luiz Gustavo Bichara, do Bichara Advogados.
Ele chama a atenção que a lei que instituiu o RERCT não impõe essa condição. Estabelece somente a declaração, sem os documentos, e no artigo 4º consta ainda, por exemplo, que não podem ser usadas “como único indício ou elemento para efeitos de expediente investigatório ou procedimento criminal”.
Arthur Ferreira Neto, professor da PUC-RS e vice-presidente do Instituto de Estudos Tributários (IET), diz que há casos de contribuintes que já foram intimados a apresentar a documentação. Ele atuou em pelo menos três e em todos eles enviou petição à Receita com o trecho do artigo 4º da lei.
“A lógica do quem não deve não teme não pode ser aplicada a esses casos simplesmente porque a lei criou regras especiais. O que está acontecendo agora é uma absoluta deslealdade do governo”, aponta. “Não é que a Receita não possa fiscalizar. Ela deve. Mas cabe a ela apresentar as provas contra o contribuinte. Cabe a ela demonstrar que os recursos declarados não são lícitos.”
Essa é uma questão que preocupa, segundo advogados, porque há uma parcela considerável de contribuintes que não conseguiu provar, com documentos, a origem dos recursos. Especialmente em razão do tempo. São vários os casos de contas bancárias, por exemplo, afirmam, passadas de pai para filho em décadas passadas ou mesmo de pessoas que receberam por serviços prestados fora há muito anos.
Haveria, nessas situações, a possibilidade de apresentar os extratos bancários, com as movimentações dos últimos anos, mas não o documento específico da origem do dinheiro.
Iágaro Jung Martins, da Receita Federal, afirma, no entanto, que não há motivo para pânico. “Para essas situações vai prevalecer o princípio da razoabilidade. As pessoas vão conseguir comprovar com algum documento, algum registro de conta bancária. Como ele soube que o dinheiro era dele? Esse documento pode ser apresentado”, diz. “Sabemos diferenciar essas situações das que envolvem, por exemplo, recursos de corrupção.”
Fonte: Valor-11/12/2018.
Por Joice Bacelo | De São Paulo