Quando se pensa na decisão judicial, é imperioso lembrar o dever constitucional que o juiz tem de fundamentá-la, sob pena de nulidade, nos termos do artigo 93, IX, da Constituição da República. Mas, de que adianta fundamentá-la, se o juiz, com base na chamada “livre convicção motivada”, na sua experiência e, sobretudo, do “alto de sua prudência e autoridade”, pode dizer qualquer coisa para justificar suas conclusões? Em outras palavras, se o juiz pode julgar de acordo com sua vontade, de forma solipsista, ou pior, até em nome de interesses inconfessáveis, e essa decisão vai valer, de que adianta falar em exigência constitucional de fundamentação das decisões?
Por essa razão básica, que poderia ser ilustrada aqui com inúmeros exemplos, é que muitos pensadores brasileiros do direito colocaram o tema da decisão judicial em foco, expondo-a como campo de trabalho, com a finalidade de compreender, de um lado, como ela é construída e, de outro, descrever os vários modelos sobre como ela deveria ser construída. Alguns autores chegam a propor caminhos. No Brasil, como referência no tema, cito Paulo de Barros Carvalho[1], Tercio Sampaio Ferraz Júnior[2] e Lenio Streck[3].
Entendo que a decisão judicial envolve duas atividades separadas e bem definidas: a interpretação e a argumentação. Através delas, ocorre o que, com inspiração em Paulo de Barros Carvalho, chamo de construção da decisão judicial. Alinhado com os três citados professores, parto dos seguintes pressupostos: (i) a “realidade é construída pela linguagem e em seus limites”, e (ii) a “verdade somente pode assim ser designada no interior do sistema de referência” que se considere. Ignorando-se essas premissas, o direito será pouco entendido, a não ser que se o considere apenas em sua superficialidade.
A atividade hermenêutica ou interpretativa, nesse passo, é relacionada com a compreensão da linguagem com que trabalha o juiz: os textos das narrativas das partes, expressos nas petições e nas diversas formas de produção de provas, bem como os textos das normas jurídicas, expressos, principalmente, através das leis, da jurisprudência, dos precedentes e das súmulas.
É a partir da maneira como o juiz compreende essa linguagem, totalmente condicionada e marcada pelo seu horizonte interpretativo, definido por suas pré-compreensões (limitações, crenças e, sobretudo, seus valores), é que lhe será possível chegar à sua própria narrativa do caso concreto e, consequentemente, ao fato jurídico a ele correspondente, à norma jurídica de decisão e, por fim, à decisão judicial. A atividade interpretativa, portanto, fornece os fundamentos para a decisão judicial.
Acerca da interpretação e da hermenêutica, remeto o leitor para os seguintes textos publicados pelo ConJur: https://bit.ly/2BfqgPL e https://bit.ly/2zUwbtF.
E a atividade argumentativa? Em que ela consiste? Qual sua importância para a construção da decisão judicial? Em que a atividade argumentativa se diferencia da atividade interpretativa? É o que tentarei mostrar neste breve texto.
A atividade argumentativa
A atividade argumentativa consiste exatamente em justificar como o magistrado chegou à sua narrativa, ao fato jurídico respectivo, à norma do caso concreto e, portanto, ao resultado que compõe a sua decisão. E essa justificação se faz através de argumentos, postos em linguagem descritiva e prescritiva, daí a argumentação, que tem como objetivo convencer seus destinatários de que seus fundamentos encontram respaldo na prova dos autos e no ordenamento jurídico.
Em tais termos, existe uma decisão na mente do juiz, a que ele chega através da atividade interpretativa, ou seja, por meio da compreensão da linguagem, e outra que ele expressa, ou seja, que ele profere de maneira escrita ou oral, e que é fruto de sua atividade argumentativa.
No texto escrito, portanto, o magistrado deverá: a) descrever a demanda posta em juízo em todos os seus pontos relevantes, detalhando a causa de pedir, o pedido e as respectivas provas apresentadas; b) descrever as questões, materiais e processuais, originadas em razão da resistência a um ou todos os pontos alusivos aos pedidos formulados, à causa de pedir apresentada e às provas produzidas; c) descrever como foi conduzida a instrução processual, enfatizando quais provas foram produzidas e quais foram negadas; d) expor, se for o caso de forma argumentativa, qual foi o enunciado normativo utilizado como critério central da decisão; e) justificar, argumentando, como foi construída a norma jurídica em sentido estrito; f) justificar, argumentando, quais fatos foram tidos como provados e quais não o foram; g) justificar, argumentando, como foi feita a qualificação jurídica dos fatos a partir da norma jurídica válida; h) expor, justificando, os precedentes utilizados e os que, invocados, tenham sido rejeitados; i) por fim, apresentar o resultado da demanda, procedente/improcedente, e as providências determinadas para a sua efetivação.
Assim, para que a decisão judicial se apresente bem fundamentada e justificada, todos esses itens precisam ser expostos de maneira clara, estando tal exigência agora disposta expressamente no CPC, o que demanda uma mudança de atitude e responsabilidade muito maior dos magistrados brasileiros. No marco do artigo 489 do novo Código, aliás, esta exigência está posta de maneira expressa.
A justificação é feita no texto através de argumentos e é em torno deles, portanto, que se elaboram as diversas teorias da argumentação. Argumentar, assim, nada mais é do que justificar as premissas de uma conclusão, quando outra ou outras são possíveis, ao menos em tese. Não há decisão judicial sem argumentação[4].
E agora, quando se luta para tentar implantar no Brasil a “cultura do precedente”, ter consciência acerca de como a argumentação se dá e qual sua importância é essencial para se alcançar a compreensão da diferença entre jurisprudência e precedente, dois temas relevante, porém ainda confundidos. Sobre a diferença entre eles, texto publicado recentemente no ConJur.
A teoria da argumentação
No plano dos estudos teóricos em torno da argumentação judicial, as principais perguntas a serem feitas são as seguintes: a) o que é um argumento válido? b) existe diferença entre interpretar e argumentar? c) qual a diferença entre um caso simples e um caso complexo? d) é suficiente que o juiz, na sentença, apenas mencione os fatos, os enunciados normativos aplicados e apresente um silogismo que represente a subsunção da premissa menor (os fatos) na premissa menor (a lei)? e) como se pode justificar, adequadamente, as valorações realizadas no processo de compreensão e interpretação da linguagem das narrativas das partes e dos enunciados normativos? f) se o caso for simples, ainda assim, é necessário que se apresente justificativa? g) há limite para a fundamentação das decisões judiciais, ou seja, existem casos nos quais a hermenêutica não consegue dar sentido à linguagem, mas cuja falha pode ser suprida por argumentos? h) da mesma forma como na interpretação, que está limitada pela narrativa das partes e pelos enunciados normativos, os argumentos também se submetem aos mesmos limites?
Portanto, a teoria da argumentação não é uma teoria sobre a validade da norma, não é uma teoria sobre a interpretação da norma, muito menos é uma teoria sobre provas e procedimentos judiciais, mas uma teoria sobre a validade de um ou mais argumentos utilizados para justificar determinada conclusão, de maneira que perguntas sobre “a relação entre a norma jurídica e a norma moral”, por exemplo, não se constituem em questões que devam ser respondidas pela teoria da argumentação.
Todavia, se houver a necessidade desse tipo de problema ser abordado em uma decisão judicial, com a finalidade de resolver alguma das questões componentes da demanda, ele será decidido e fundamentado através da linguagem descritiva e prescritiva, porém justificado através de argumentos.
Neste texto, entretanto, não há a necessidade de se prescrever ou recomendar qualquer uma das muitas teorias da argumentação existentes, mas apenas apontar a função e os limites da justificação na construção da decisão judicial, apresentar os principais enfoques e teorias existentes, demonstrar o processo valorativo existente em torno dessa atividade justificativa por parte do magistrado e de que maneira ele influencia na tomada da decisão judicial.
As teorias da argumentação trabalham com enfoques diversos[5], ora privilegiando o aspecto lógico dos argumentos de justificação, ora os aspectos retóricos, ora os aspectos dialógicos. Todos eles, contudo, têm como objetivo demonstrar ou construir a validade do argumento para justificar uma conclusão.
O enfoque na lógica[6] é utilizado para dar validade formal ao discurso e a teoria que operará a partir dela o faz através do emprego dos diversos tipos de lógica aplicados ao discurso: silogismo[7], lógica das proposições, lógica dos predicados e lógica deôntica. O critério lógico é relevante para garantir que as decisões judiciais sejam fundadas em argumentos e critérios gerais e universais, promovendo a coerência do julgador para as próximas decisões a serem tomadas em casos semelhantes.
Através do enfoque retórico, por sua vez, o objetivo é garantir que a decisão judicial tenha aceitação entre aqueles para os quais ela é dirigida. Quem trabalha com o enfoque retórico não dispensa, necessariamente, o critério lógico, porém entende que este é insuficiente para justificar uma decisão judicial mais complexa, especialmente no que diz respeito à justificativa acerca da interpretação do enunciado normativo, ou seja, da construção da norma jurídica. O enfoque do critério retórico é no conteúdo dos argumentos e na sua aceitação pelos jurisdicionados. Trabalham com esse enfoque Stephen Toulmin[8], com seu “modelo de argumentação”, Theodor Viehweg[9] e seu “enfoque temático”, e Chaim Perelman[10] e sua “nova retórica”.
Segundo o critério dialógico, o importante é que sejam fixadas regras para que se possa desenvolver um diálogo racional entre o juiz e as partes, de modo que, daí, possa resultar uma decisão aceita por todos. Trata-se de enfoque procedimental legitimador das conclusões de um debate. São representantes destacados de teorias da argumentação que trabalham sob esse enfoque: Jürgen Habermas, Robert Alexy, Aulis Aarnio e Aleksander Peczenik. Na linha de Habermas, entendem que a argumentação jurídica é uma forma de comunicação racional que tem como objetivo chegar a um consenso racional por meio da dialética (debate e discussão). Tais autores, portanto, trabalharão regras que deverão presidir a dialética e a argumentação necessária para justificar as conclusões suficientes para a construção de uma decisão judicial.
Conclusões
Enfim, se queremos pensar a decisão judicial em sua complexidade e os precedentes enquanto decisões judiciais capazes de orientar juízes, tribunais e a comunidade jurídica, temos que ir mais longe do que a velha ideia de jurisprudência, que significa nada mais, nada menos, do que apenas um conjunto de decisões que concluem em um mesmo sentido acerca da resolução de uma demanda.
Ao contrário, os precedentes são decisões que revelam, tanto quanto isso seja possível, como se chegou aos fatos que compõem a narrativa do juiz e como se chegou à norma de decisão do caso concreto, e isso somente é possível mediante a consciência das atividades interpretativa e argumentativa realizadas pelo magistrado.
[1] Direito tributário, linguagem e método. Noeses: São Paulo, 2013.
[2] Introdução ao estudo do direito. São Paulo: Atlas, 2015.
[3] Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2012.
[4] “La argumentación es la actividad de formular argumentos a favor o en contra de algo. Esto se pude hacer en contextos especulativos o prácticos. En cuestiones puramente especulativas, se aducen argumentos a favor o en contra de una creencia sobre lo que se considera verdadero. En contextos prácticos, se aducen argumentos que pueden ser, o razones en contra o a favor de hacer algo, o razones para sostener una opinión sobre lo que debe, podría o pude hacerse”. (MACCORMICK, Neil. Argumentación e interpretación en el Derecho. In: Doxa, Cuadernos de Filosofía del Derecho, nº33, 2010. Disponível em: <www.cervantes.com>. Acesso em: 08 set.2016, p.65-78).
[5] FETERIS, Eveline T. Fundamentos de la argumentación jurídica: revisión de las teorías sobre la justificación de las decisiones judiciales. Traducción de Alberto Supelano. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2007.
[6] A lógica alética clássica trabalha com os seguintes princípios: (I) identidade, segundo uma premissa é identificada pelo seu valor de verdade (verdadeiro ou falso), (II) não-contradição, segundo o qual a premissa não pode ostentar os dois valores ao mesmo tempo e (III) terceiro excluído, segundo o qual não há um terceiro valor a ser identificado no objeto.
[7] São tipos de silogismo: entimema, epiquerema, polissilogismo, silogismo expositório, silogismo informe, sorites, silogismo hipotético, dilema.
[8] Toulmin, partindo da ideia de que a utilização da lógica formal não é suficiente para construir um argumento sólido, bem como da ideia de que este somente é alcançado a partir do emprego de um modelo de argumentação estrutural e universal de solidez, baseado em níveis representados pelos conceitos de pretensão, razão, garantia e respaldo, e complementado por critérios específicos a cada campo do saber, elaborou uma estrutura de argumentação jurídica que opera considerando níveis de justificação. (TOULMIN, Stephen E. Os usos do argumento. Tradução de Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2006).
[9] Para Theodor Viehweg, o caráter sistemático da ordem jurídica, a partir do qual a solução para as questões jurídicas seria obtida através de um processo dedutivo, não é fruto de observação empírica, mas se trata apenas de necessidade argumentativa. Em verdade, a ordem jurídica é fragmentada e a solução para as questões não advém de premissas predeterminadas, mas é construída, inclusive de forma sistemática, a partir de um raciocínio tópico, sobre pontos de partida previamente selecionados e que serão utilizados na argumentação. Na leitura argumentativa de Theodor Viehweg, esses pontos de partida seriam os “lugares comuns” ou “topoi” oferecidos pela tradição na qual está inserido o intérprete. (LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p.202).
[10] Na “nova retórica” de Chaim Perelman, “pontos de partida” são fatos, verdades, presunções, valores, hierarquia de valores e ideologia (PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.73-96), Este último representa um conjunto de valores que Perelman chamou de “loci”.
Por Bianor Arruda Bezerra Neto
Bianor Arruda Bezerra Neto é juiz federal da Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência (TNU), doutor pela PUC-SP e professor do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).
Revista Consultor Jurídico, 15 de dezembro de 2018.