No último dia 14 de novembro a Receita Federal do Brasil publicou a Portaria nº 1.750, que trata das representações para fins penais em relação a determinados crimes contra a administração pública federal e também ilícitos que, em tese, podem representar atos de improbidade administrativa.
Em seu artigo 16, referida Portaria prevê a divulgação, pelo site da RFB, de determinadas informações referentes a tais representações, incluindo o nome das pessoas a quem se imputam os ilícitos, CPF, CNPJ e a respectiva tipificação legal.
A reação foi imediata. De um lado, advogados denunciam o que seria um mecanismo de coerção para forçar os representados a liquidarem os débitos fiscais (quando o caso) ou de alguma forma comporem com o Ministério Público, de modo a deixarem de constar dessa espécie de “lista negra”. De outro lado, a RFB alega que só está dando cumprimento ao dever de transparência previsto no artigo 5º, XXXIII da CF e regulamentado pela excelente Lei de Acesso à Informação – LAI (Lei Federal n. 12.527/2011).
Para proteger o interesse do representado, deve estar claro nessa lista o estágio do processo, sua instância, principais decisões etc.
O tema é extremamente relevante e merece profunda reflexão. Em grande parte dos casos envolvendo a divulgação de informações públicas há de fato a necessidade de se ponderar ao menos dois princípios que inevitavelmente se colidem: o interesse público de acesso à informação e o direito à privacidade dos administrados.
Embora não exista uma fórmula pronta para se dirimir conflitos como esse, a LAI traz mecanismos que norteiam a atividade do administrador. Assim, é preciso reconhecer em primeiro lugar que as informações divulgadas pela Portaria 1.750 atendem de fato a um interesse público relevante e são úteis a toda a coletividade.
Ademais, tais informações já estão de certa forma disponíveis ao público, considerando-se que processos fiscais, criminais e de improbidade têm suas principais informações divulgadas pelo Judiciário, a menos que tenham sido afetados pelo segredo de justiça.
Desse modo, quer nos parecer que a RFB não esteja praticando um ato de “coerção”. Pelo contrário, ela está apenas dando acesso a uma informação pública útil e relevante, em estrito cumprimento ao dever de transparência que constitucionalmente lhe é imposto.
Por outro lado, há um justo receio dos representados de virem a ser moral ou patrimonialmente prejudicados pela vinculação explícita de seus dados aos ilícitos que lhe são imputados antes de uma condenação final. Não podemos negar que muitos desses processos acabam sendo julgados em sentido favorável aos representados, inclusive pelo reconhecimento de sua inocência.
Assim, é preciso ponderar os dois interesses em conflito, de modo a garantir a transparência e ao mesmo tempo impedir que se atribua à divulgação dos dados um efeito negativo à imagem dos representados.
Tecnicamente falando, a ponderação de princípios, de acordo com a Teoria de Robert Alexy, é atendida quando direitos fundamentais como a transparência são cumpridos da melhor forma possível, mediante medidas administrativas que os atendam sem impor restrição desnecessária ao princípio colidente (no caso, a privacidade dos representados). Dito de outra forma, o dever de se dar acesso às informações relativas às representações para fins penais pode – e deve – ser cumprido, mas com a cautela necessária para que essa informação seja completa e não dê ensejo a interpretações enviesadas.
Nesse espírito, vislumbramos ao menos duas medidas que a RFB deveria adotar ao divulgar as informações em comento.
A primeira diz respeito especificamente aos débitos fiscais. É preciso diferenciar os débitos que estão em aberto daqueles créditos tributários cuja exigibilidade esteja suspensa, seja por ordem judicial ou por parcelamento. Assim, ao divulgar a lista das representações fiscais, é crucial que a RFB indique, com a mesma visibilidade do nome do representado, a situação do respectivo crédito tributário, especialmente no que concerne à suspensão de sua exigibilidade. Essa é inclusive uma informação que a própria RFB já divulga nas pesquisas de situação fiscal atualmente disponíveis on-line.
Além disso, também seria importante que a divulgação dessas informações contivesse a menção ao número e andamento atualizado do respectivo processo judicial. Para se proteger o interesse do representado, deve estar claro nessa lista o estágio do processo, sua instância, principais decisões etc.
O impacto causado à imagem do servidor que tiver seu nome mencionado na lista de representados por improbidade com a menção a uma sentença de primeira instância favorável, por exemplo, será obviamente muito menor do que se a lista fizesse menção apenas ao ilícito que lhe é imputado.
Claro que ambas as medidas são apenas sugestões que nos ocorrem nesse primeiro momento, podendo haver outras alternativas que atendam ainda mais a essa cuidadosa ponderação de interesses para a qual chamamos a atenção.
A LAI brasileira é uma ferramenta poderosíssima de fomento à transparência e ao próprio controle social sobre a administração pública, devendo a publicação da Portaria RFB 1.750 ser recebida com encômios por toda a sociedade. É preciso, porém, vigiar o cometimento de excessos, em respeito aos interesses privados envolvidos.
Por Fernando A. M. Canhadas
Fernando A. M. Canhadas é mestre e doutor em direito administrativo pela PUC-SP, sócio de Lima Gonçalves, Jambor, Rotenberg & Silveira Bueno Advogados e autor do Livro “Direito de Acesso à Informação Pública: o Princípio da Transparência Administrativa” (Appris Editora, 2018).
Fonte : Valor – 29/11/2018