Recentemente, têm sido amplamente divulgadas nas mídias as diversas iniciativas dos fiscos de implementação de programas de compliance tributário. Exemplo dessas iniciativas é a Consulta Pública RFB 4/2018 aberta pela Receita Federal no último mês para receber opiniões sobre o programa “Pró-Conformidade” a ser lançado para estimular as empresas a adotarem boas práticas fiscais mediante classificação conforme o grau de risco que representam.
O programa foi desenhado para classificar os contribuintes nas categorias “A”, “B” ou “C” como resultado da combinação de determinados critérios, de forma que os “bons” contribuintes sejam premiados e os “maus” contribuintes sofram uma maior rigidez na sua fiscalização e percam certas prerrogativas. Essa medida deveria, em teoria, gerar incentivos suficientes para que os contribuintes cumpram voluntariamente suas obrigações fiscais.
A despeito da legítima iniciativa do fisco federal, analisando de forma mais detalhada a minuta submetida à consulta pública, observamos que o Pró-Conformidade acabou desviando do objetivo maior pretendido por programas dessa magnitude, que é efetivamente mudar o paradigma da relação fisco-contribuinte — de repressão para cooperação — pelo desenvolvimento de um ambiente colaborativo.
Inicialmente, vale ressaltar que a Receita Federal propõe a instituição de programa dessa relevância por meio de Portaria, ato normativo claramente inadequado para dispor sobre deveres dos contribuintes e estabelecer medidas punitivas. A aprovação de programas como o Pró-Conformidade deve vir do Congresso Nacional, mediante edição de lei federal, e não de ato discricionário da administração que sequer permite a participação popular por intermédio dos seus representantes eleitos. Nesse aspecto, o programa não preza pelo cumprimento dos princípios da legalidade e segurança jurídica, basilares do Direito Tributário.
Ademais, como vemos já na exposição de motivos que precede a Portaria, o fisco deixa transparecer a sua visão de superioridade perante o contribuinte, estabelecendo uma série de premissas quanto ao comportamento ideal dos contribuintes sem apontar quais medidas concretas serão adotadas pela administração para obter um ambiente mais amistoso e colaborativo.
Fica claro o intuito meramente arrecadatório do programa, sem a contrapartida do apoio ao contribuinte para cumprimento espontâneo das complexas obrigações fiscais. Não vemos na minuta a indicação de condutas essenciais de capacitação e aprimoramento dos agentes fiscais e aperfeiçoamento dos canais de atendimento aos contribuintes, ou mesmo métricas para avaliação dos agentes fiscais conforme sua conduta colaborativa. Essencialmente, notamos a premissa de cobrar, sem servir.
Essa premissa está refletida, inclusive, na descrição das contrapartidas que seriam dadas aos “bons contribuintes” e medidas restritivas aplicadas aos “maus contribuintes”. Em linhas gerais, não há premiação significativa para os “bons contribuintes”, mas há punição excessiva para “maus” contribuintes que se enquadrarem nessa categoria por razões não muito claras — e que não necessariamente envolvem qualquer prática de ato doloso ou fraude —, dado que os parâmetros para classificação sequer foram esclarecidos no texto da Portaria.
Os meios de repressão aos contribuintes já existem e são muitos. Editar novo ato normativo ampliando a aplicação desses meios não parece estar alinhado com o intuito de colaboração. Se hoje o compliance não é satisfatório, a razão não está atrelada à inexistência de medidas punitivas, mas justamente à ausência de um ambiente favorável ao cumprimento voluntário das regras, seja pela sua complexidade, pela falta de transparência na atuação da administração e de orientação ao público.
No tocante aos critérios empregados para classificação dos contribuintes, vale mencionar a ausência completa dos métodos para ponderação dos fatores que compõem essa nota. Soa estranha a ausência de transparência nesse sentido tendo em vista que o programa já foi veiculado por meio de Portaria, o que nos leva a questionar qual seria o instrumento normativo editado para regulamentar essas disposições.
Também assusta a arbitrariedade do texto proposto quanto a alguns fatores que serão avaliados para se obter a classificação dos contribuintes, tais como o resultado dos pedidos de restituição e declarações de compensação ou existência de retificações reiteradas das declarações fiscais. Esses fatores não são representativos de prática de infração tributária e os contribuintes não podem se sentir constrangidos no exercício do seu direito de apresentar pedidos de restituição e/ou compensações ou mesmo de corrigir informações eventualmente equivocadas e que não implicam qualquer dano concreto ao fisco.
Ao atribuir relevância a esses fatores, nos parece que a autoridade fiscal coage o contribuinte ao recolhimento de valores não necessariamente devidos, o que representa sanção política já amplamente rechaçada pelos nossos Tribunais. Ainda, o emprego desses fatores para classificar e consequentemente punir os contribuintes viola o direito constitucional de petição e os princípios do contraditório e ampla defesa.
Vale também observar que a apresentação de garantia em processo judicial em que o contribuinte exerce sua ampla defesa não o isenta de receber uma nota ruim com relação ao cumprimento das suas obrigações tributárias. Isso porque o programa pretende desconsiderar apenas os débitos com exigibilidade suspensa, mesmo que o fisco não sofra nenhum prejuízo concreto e tenha a garantia da satisfação do crédito.
Não fosse suficiente a ampliação das medidas repressoras a “maus contribuintes” classificados como tal com base em critérios pouco transparentes e sem previsão em lei, vale ainda notar que a Portaria leva em consideração, para fins de classificação, períodos de apuração pretéritos. Ou seja, a Receita Federal pretende penalizar contribuintes em razão de condutas adotadas anteriormente à vigência do programa.
Em suma, a instituição de um programa de compliance tributário federal deve ocorrer por meio de lei aprovada pelo Congresso Nacional, após amplo debate público. As regras do programa devem ser claras e bem definidas, respeitando os princípios gerais do Direito Tributário. Ainda, e acima de tudo, o sucesso de um programa dessa magnitude requer o compromisso real de colaboração por parte da Receita Federal.
Por Giancarlo Chamma Matarazzo e Gabriela Conca
Giancarlo Chamma Matarazzo é advogado, sócio da área tributária do Pinheiro Neto Advogados.
Gabriela Conca é associada da área tributária do Pinheiro Neto Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 20 de novembro de 2018.
https://www.conjur.com.br/2018-nov-20/opiniao-programa-conformidade-receita-contramao