Novamente iremos nos utilizar deste importante meio jurídico de publicação, para tecer comentários a respeito de recente publicação da Consultoria Tributária da Secretaria de Fazenda do Estado de São Paulo, contida na Consulta Tributária nº 17.778/2018, de 19 de julho de 2018 (1) que, em síntese, fixou entendimento sobre a aplicação do regime de devolução de mercadorias e em que hipóteses o contribuinte poderá apropriar créditos do ICMS vinculados a tal operação.
A ementa desta Resposta à Consulta é a seguinte:
“ICMS – Devolução de mercadoria efetuada por pessoa física ou jurídica não obrigada à emissão de documento fiscal – Crédito.
I. A recusa no recebimento da mercadoria representa a hipótese em que a mercadoria retorna ao estabelecimento de origem sem que o destinatário a tenha recebido. Nesse caso, devem ser observados os procedimentos dispostos no artigo 453 do RICMS/2000.
II. Nessa situação, há a previsão legal para a tomada de crédito do valor destacado de imposto, conforme disposição expressa da alínea “b” do inciso I do artigo 63 do RICMS/2000.
III. Após o recebimento da mercadoria pelo destinatário, nos casos de devolução por troca ou garantia, há a possibilidade de crédito, desde que observados os requisitos do artigo 452 do RICMS/2000. Assim, deve ser identificada, no documento fiscal referente à entrada, a pessoa que efetuou essa devolução (artigo 452, §2º, item 1, RICMS/2000).
IV. Todavia, a eventual devolução fora das condições de troca e garantia, como a desistência de compra pelo cliente, não dá direito ao contribuinte de lançar como crédito o imposto pago por ocasião da saída.”
Chamou-nos a atenção o critério adotado nos transcritos incisos I e IV, de acordo com os quais sustenta a Consultoria Tributária que a devolução de mercadorias, com ou sem o recebimento pelo respectivo destinatário, é o fator suficiente para que o contribuinte possa ou não apropriar o crédito do ICMS, a fim de anular o efeito da anterior saída desta mercadoria do seu estabelecimento.
De acordo com este prestigiado Órgão da Secretaria de Fazenda do Estado de São Paulo, seriam estes os fundamentos a justificar esta tomada de posição:
4. Posto isso, cabe esclarecer que a recusa no recebimento da mercadoria representa a hipótese em que a mercadoria não foi entregue ao destinatário, ou seja, retorna ao estabelecimento de origem sem que o destinatário a tenha recebido. Nessa situação, a entrada de mercadoria que retornou ao estabelecimento da Consulente, em virtude de recusa do destinatário em recebê-la, caracteriza devolução, uma vez que terá como objeto a anulação da operação de saída dessa mercadoria, nos termos do artigo 4º, IV, do RICMS/2000, devendo ser observados os procedimentos dispostos no artigo 453 do RICMS/2000.
(…)
5. Por outro lado, no caso de o destinatário receber a mercadoria e, posteriormente, realizar a sua devolução fora das condições de troca e garantia, tal como no desfazimento do negócio (desistência do cliente), não há direito ao contribuinte de lançar como crédito o imposto pago por ocasião da saída. Isso porque, com a entrega ao usuário final, termina o ciclo da comercialização da mercadoria, considerando-se definitivo o recolhimento do imposto realizado nos estágios anteriores.
Vê-se, assim, que a circunstância fática de o destinatário receber ou não a mercadoria é o fator de discriminação que autorizaria ou não a apropriação o crédito do ICMS. Ainda, sustenta a Consultoria Tributária que o recebimento da mercadoria com posterior decisão de o destinatário desfazer o negócio jurídico com o respectivo remetente, não daria ensejo à anulação da operação sujeita à anterior incidência do ICMS, porquanto já teria ocorrido, neste caso, o encerramento do ciclo econômico de comercialização desta mesma mercadoria.
Ousamos discordar desta afirmação.
Com efeito, o que se percebe nesta fundamentação da Consultoria Tributária é que ainda paira nos responsáveis pela elaboração de suas manifestações o pensamento de que o regime jurídico de incidência do ICMS partiria da premissa de que é a mera circulação física da mercadoria o ponto capital para determinar os efeitos fiscais previstos na legislação deste imposto.
Pensamento este sabidamente superado pela doutrina e pela jurisprudência desde o século passado e que, portanto, deve ser submetida à crítica porque acaba por limitar os direitos dos contribuintes igualmente reconhecidos por estas mesmas doutrina e jurisprudência. Senão vejamos.
Note-se que este Órgão defende que o recebimento da mercadoria, seguida da desistência do negócio manifestada pelo adquirente/destinatário, não permitiria a aplicação do regime de devolução, porque já haveria se encerrado o seu ciclo de comercialização quando ela é recebida pelo destinatário.
Pois bem, mas de que tipo de ciclo de comercialização estamos falando? Além disto, é possível falar em comercialização de mercadoria quando um dos partícipes não a aceita e manifesta seu expresso desacordo ao devolvê-la?
Como já afirmamos acima, provavelmente a fundamentação invocada pela Consultoria Tributária parte da premissa de que o fato gerador do ICMS é a mera saída da mercadoria do respectivo estabelecimento contribuinte. Logo, o ciclo de comercialização teria se encerrado com a saída da mercadoria do respectivo estabelecimento do vendedor.
Mas isto não é suficiente para se obter a conclusão a que chegou.
Ora, se a própria Consultoria Tributária afirma que a mercadoria percorre um ciclo de comercialização, é preciso então que ela trabalhe com este segundo critério e, assim, demonstre se há ciclo de comercialização mesmo na hipótese em que o adquirente/destinatário desfaz o negócio jurídico que tinha aquela mercadoria como objeto negociado.
Ora, parece-nos um contrassenso insuperável sustentar que há comercialização quando o negócio jurídico é desfeito por uma das partes diretamente interessada, qual seja o adquirente/destinatário. Tampouco sustentar que isto faz parte de um ciclo de comercialização.
Não estamos tratando aqui, frise-se, de inadimplência do adquirente, circunstância na qual efetiva-se a obrigação do vendedor de entregar a mercadoria, mas não a do comprador, relativamente ao preço devido. Para esta situação há sim a concretização da etapa do ciclo econômico da mercadoria, cujo preço, porém, não foi adimplido pelo adquirente.
O caso respondido pela Consultoria Tributária sustenta-se a tese de que haveria distinção jurídica entre (i) o desfazimento do negócio jurídico por desistência do contratante e, portanto, sem a reposição da mercadoria negociada e (ii) o desfazimento do negócio jurídico com a reposição da mercadoria por mera troca ou por troca decorrente de cláusula contratual de garantia dada pelo vendedor.
E, sendo assim, apenas na segunda hipótese haveria possibilidade de o contribuinte recuperar o imposto destacado a título de crédito.
Novamente entendemos que se equivoca a Consultoria Tributária por negar a recuperação do imposto destacado em negócio jurídico submetido ao desfazimento por desistência do contratante.
Isto porque em ambos os cenários há a desconstituição do negócio jurídico prévio.
No primeiro cenário, o desfazimento por desistência da parte contratante implica tornar indevido o destaque do imposto realizado pelo contribuinte vendedor da mercadoria.
Isto porque, desfeito o negócio jurídico, inclusive com a devolução da mercadoria pelo adquirente/desistente, nada há a ser tributado porque inexistiu operação sujeita ao ICMS. Logo, o destaque feito na respectiva nota fiscal é manifestamente indevido, impondo sua recuperação por parte do vendedor por se tratar de indébito tributário. E, neste contexto, importante salientar que não se aplica a limitação contida no art. 166 do CTN, porque não houve o translado do encargo do ICMS, na medida em que o comprador desistiu da aquisição; logo, se não houve preço adimplido, o ICMS dele não fez parte. O destaque, portanto, torna-se indevido devendo ser restituído ao respectivo contribuinte a título de crédito em sua escrita fiscal, nos termos, aliás, do que determina o inciso V do art. 63 do RICMS/SP em vigor.
Mas, como visto acima, parece que a Consultoria Tributária se apega no fato de que, tendo havido a saída física da mercadoria do estabelecimento do vendedor, isto já seria suficiente para determinar o alegado encerramento do seu ciclo econômico, impedindo a apropriação do crédito do ICMS. Argumento que, em nossa opinião, não se sustenta, como demonstrado.
No segundo cenário, o direito ao crédito se justifica não só pelo fato de que a mercadoria teria sido devolvida ao vendedor pelo regime de troca, inclusive com garantia (“a”, I, art. 63, RICMS/SP), mas igualmente porque com esta devolução opera-se a anulação do negócio jurídico sujeito ao ICMS, devendo, assim, ocorrer a necessária anulação dos respectivos efeitos fiscais nos registros dos contribuintes envolvidos (IV, art. 4º, RICMS/SP).
E com esta anulação, o vendedor daquela mercadoria assume a condição civil de devedor do valor equivalente ao preço recebido do comprador. O comprador, assim, possui um direito de crédito em face do vendedor/devedor; crédito (civil) equivalente àquele valor do preço entregue pelo comprador.
Este direito de crédito será, então, quitado mediante a entrega de nova mercadoria pelo vendedor/devedor, ensejando, assim, novo negócio jurídico que tem por objeto tal mercadoria e cujo preço para sua quitação já havia sido dado pelo comprador quando da ocorrência do primeiro negócio jurídico realizado com o vendedor.
O direito de crédito, portanto, é cabível em ambos os cenários.
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1 http://info.fazenda.sp.gov.br/NXT/gateway.dll?f=templates&fn=default.htm&vid=sefaz_tributaria:vtribut. Acesso em 15/08/2018, às 15:19h.
Por PEDRO GUILHERME ACCORSI LUNARDELLI – Advogado. Mestre e Doutor pela PUC/SP
Fonte: Jota- 29/09/2018