A recente redução da alíquota dos concentrados de refrigerante, promovida pelo Decreto 9.394/2018, e a reação desproporcional que se seguiu – não apenas dos grandes conglomerados industriais do segmento de refrigerantes, mas também do corpo político que os apoia – deixaram exposta, sem máscaras, a distorção gerada pelos creditamentos de IPI na Zona Franca de Manaus, que há décadas desafia o equilíbrio fiscal brasileiro.
A discussão remonta a 1998, quando o Supremo Tribunal Federal validou o creditamento de IPI pela aquisição de extrato de refrigerante oriundo da Zona Franca de Manaus, em nome da não cumulatividade. Em julgados posteriores, o Tribunal superou o fundamento não cumulativo, mas ainda pende de definição o julgamento dos insumos da Zona Franca.
Em junho deste ano, a alíquota do concentrado de refrigerante foi alterada pelo Decreto 9.394. Sobreveio, na sequência, o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade por meio da qual o governador do Estado do Amazonas reitera, como argumento, o fervoroso discurso em torno da intocabilidade da Zona Franca de Manaus: sua importância ambiental e seus incentivos garantidos pela Carta de 88.
Não há ocupação territorial, não há desenvolvimento social. Há o enriquecimento dos grandes fabricantes, em detrimento do Fisco
Imagina-se, a partir do manejo da ação direta, que a redução de alíquota promovida pelo Decreto tenha atingido em cheio a indústria da Zona Franca. Bem, isso não ocorreu. O que fica, talvez atenuado, é o eficiente e calculado mecanismo engendrado para multiplicar e convolar em milionários os créditos a serem utilizados pelas fábricas situadas fora da Zona Franca. Sim, quem mais ganha com a decisão de 1998 do Supremo – e muito – são os fabricantes que compram insumos na Zona Franca mas estão situados fora dela.
O Decreto 9.394 limitou-se a reduzir de 20% para 4% o IPI do concentrado de refrigerante, insumo principal do produto final tributado em 4%. O detalhe é que as indústrias sediadas na Zona Franca não recolhem IPI, por força de isenção legal. Então, em princípio, os estabelecimentos da Zona Franca não são alcançados pela redução de alíquota, que não as abona nem prejudica. O detalhe é o creditamento. É que, reduzida a alíquota, reduz-se o índice do creditamento que será utilizado pela indústria do produto final.
Na linha de raciocínio defendida pelos guardiões da Zona Franca, o creditamento de IPI é indispensável para tornar mais atrativos os preços ali praticados e, assim, conquistar o mercado nacional, apesar das distâncias e valores de frete. Com isso, o polo industrial amazônico seria fomentado e restariam atingidos os objetivos da criação da Zona Franca – ocupação de território, criação de empregos, desenvolvimento social e ambiental.
Pois bem. O exemplo do setor de refrigerantes, beneficiado pela decisão de 1998, não poderia ser mais contundente a demonstrar a lesividade dessa engenharia tributária. Graças ao inflacionamento dos preços praticados na Zona Franca, levado a efeito com a incorporação de despesas de publicidade e royalties, além de uma anormal margem de lucro, os valores pagos pelo concentrado de refrigerantes são inexplicavelmente maiores que os valores de mercado.
A produção na Zona Franca, ao contrário do que se dizia, não barateou o preço do concentrado, antes, decuplicou-o. O que torna atrativa essa aquisição? Justamente o creditamento.
A conta é simples. Preços inflacionados geram créditos inflacionados, os quais impactam diretamente o recolhimento de IPI na saída do fabricante do produto final – sediado fora da Zona Franca. Tais créditos chegam a tal monta que o setor de refrigerantes que compra insumos da Zona Franca dá saída aos seus produtos com IPI negativo. Isso mesmo. Ao invés de recolherem o IPI – mais do que devido, aliás, em se cuidando de um produto não essencial – os produtores que compram o concentrado dos seus representantes sediados na Zona Franca não apenas deixam de pagar, mas recebem de volta valores do Fisco Federal. Entre 2015 e 2017, foram mais de R$ 2,4 bilhões em pleitos de ressarcimento. Nem a produção dos itens mais essenciais, como alimentos e medicamentos, logram esse resultado milagroso.
Mas, há mais. Os fabricantes dos concentrados mais valorizados do mercado têm resultados financeiros impressionantes – graças ao inflacionamento dos seus preços – do que decorre a remessa ao exterior de valores vultosos às grandes multinacionais do setor, credoras de royalties e dividendos. E sequer se vê uma notável geração de empregos na Zona Franca. São apenas 25 fábricas de concentrados e menos de mil empregos diretos, envolvendo práticas ambientais discutíveis. Não há ocupação territorial, não há desenvolvimento social. Há o enriquecimento dos grandes fabricantes, em detrimento do Fisco brasileiro e dos concorrentes do setor.
O discurso que pretende que o creditamento de IPI garante a salvaguarda da Zona Franca é um discurso vazio. E muito, muito caro.
Por Luciana Miranda Moreira
Luciana Miranda Moreira é Procuradora da Fazenda Nacional perante o Supremo Tribunal Federal
Fonte : Valor – 30/08/2018