Não recolher ICMS foi considerado crime pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Por seis votos a três, os ministros da 3ª Seção negaram um pedido de habeas corpus de empresários que não pagaram valores declarados do tributo, depois de repassá-los aos clientes. A prática foi considerada apropriação indébita tributária, com pena de seis meses a dois anos, além de multa.
A decisão, que uniformiza o entendimento do STJ sobre a questão, é de extrema importância pelo impacto que pode ter sobre sócios e administradores de empresas que discutem o pagamento do tributo na esfera administrativa ou judicial. Havia divergência entre as turmas de direito penal. Os ministros da 5ª consideravam a prática crime. Os da 6ª, não.
O habeas corpus (nº 399.109) foi proposto pela Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina. No processo, alega que deixar de recolher ICMS em operações próprias, devidamente declaradas, não caracteriza crime, mas “mero inadimplemento fiscal”. O recurso foi ajuizado depois de o Tribunal de Justiça (TJ-SC) afastar sentença com absolvição sumária.
No caso, a fiscalização constatou que, apesar de terem apresentado as devidas declarações fiscais, os denunciados, em determinados meses dos anos de 2008, 2009 e 2010, não recolheram aos cofres públicos os valores apurados. O montante foi inscrito em dívida ativa e ainda não foi pago nem parcelado, de acordo com o processo.
No STJ, após algumas sessões e pedidos de vista, prevaleceu o entendimento do relator, ministro Rogério Schietti Cruz. Em 2017, ele havia negado o pedido de liminar dos empresários. Ele iniciou o voto destacando a relevância social e econômica do tema.
Para o relator, a prática deve ser considerada crime para não prevalecer, entre o empresariado, o entendimento de que é muito mais vantajoso deter valores do tributo do que se submeter a empréstimos no sistema financeiro. Medida, acrescentou, que traz prejuízos aos Estados.
O valor do tributo, destacou, é cobrado do consumidor e, por isso, o não repasse pelo comerciante aos cofres públicos deve ser considerado apropriação, prevista como crime no artigo 2º, inciso II, da Lei nº 8.137, de 1990. O dispositivo determina que configura crime à ordem tributária deixar de recolher tributo no prazo legal.
De acordo com ele, seria inviável a absolvição sumária pelo crime de apropriação indébita tributária sob o argumento de que o não recolhimento do ICMS em operações próprias é atípico. Eventual dúvida quanto ao dolo, acrescentou, deve ser esclarecida com a instrução criminal (provas).
No entendimento do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, que acompanhou o relator, o que se criminaliza é o fato de o contribuinte se apropriar de valor de imposto descontado de terceiro – do consumidor ou substituto tributário. Em seu voto, chegou a citar o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que excluiu o ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, por entender que o imposto não é parte da receita da empresa, mas valor que deve ser repassado ao Estado, tratando-se de “simples ingresso de caixa”.
Para o advogado Tiago Conde, sócio do escritório Sacha Calmon Misabel Derzi Consultores e Advogado, essa é a decisão tributária mais importante do ano. “O Fisco e o Ministério Público poderão usar essa decisão de maneira irrestrita a partir de agora. É um péssimo precedente”, diz.
Pelo julgamento, a responsabilização acontece a partir do momento em que o contribuinte deixa de recolher o tributo, mesmo que ele o tenha declarado. Conde considera que o entendimento fere o direito de defesa, por não haver ainda a constituição do crédito tributário. “Isso é o mesmo que uma cobrança de tributo por meio oblíquo. O contribuinte vai ficar com medo de ir a juízo discutir uma cobrança porque pode ser responsabilizado penalmente.”
Com a decisão, segundo o advogado, o que pode acontecer é o Ministério Público oferecer denúncia sempre que tiver um processo administrativo ou judicial ainda em curso. “Se o penal for mais rápido que o tributário, posso ser condenado criminalmente e, lá na frente, o juiz da esfera tributária entender que o tributo não era devido”, afirma.
O advogado José Eduardo Toledo, fundador do escritório Toledo Advogados, e professor do Insper, explica que a sonegação sempre foi considerada crime contra a ordem tributária, por envolver intenção de fraudar. Com o tempo, surgiu a corrente de que poderia haver apropriação indébita.
Segundo a advogada Cristiane Romano, sócia do escritório Machado Meyer Advogados, considerar a falta de recolhimento crime depende da ocorrência de dolo. “Não basta deixar de pagar”, afirma. A advogada cita precedentes do STF contrários a meios coercitivos ou desproporcionais para o pagamento de impostos.
A decisão, de acordo com o advogado Rafael Watanabe, tributarista no escritório Schneider, Pugliese, é polêmica e ainda deve gerar muita discussão. “É difícil saber se o contribuinte teve ou não intenção de pagar”, diz.
Fonte: Valor-24/08/2018
Por Beatriz Olivon | De Brasília