Depois de 30 anos, a Constituição Federal ainda tem 119 dispositivos sem regulamentação. Em 28 pontos, nem proposições foram apresentadas, segundo levantamento feito pela Câmara dos Deputados. Greve de servidores, imposto sobre grandes fortunas e o procedimento para eleição indireta estão entre os assuntos que aguardam normas para determinar como deveriam funcionar. Essas lacunas, segundo especialistas, costumam levar à judicialização.
“São vários dispositivos com regulamentação pendente. São muitos os motivos”, afirma João Trindade, professor de direito Constitucional no Instituto de Direito Público (Idp). Entre as razões principais, o professor destaca a falta de consenso ou de vontade política e, até mesmo, uma observação posterior de que a previsão constitucional não é tão eficaz.
Outro motivo é o fato de a Constituição brasileira ser muito detalhada, abordando muitos assuntos, segundo Trindade. Quando promulgada, tinha 382 itens com previsão de regulamentação.
As omissões, acrescenta Trindade, acabam parando no Poder Judiciário. “E, muitas vezes, exigem que a Justiça tenha que, de certa forma, decidir em substituição ao legislador”, afirma o professor. Coube ao Supremo Tribunal Federal (STF), por exemplo, decidir sobre a regulamentação do direito de greve dos servidores públicos, aplicando a lei do setor privado.
Outro exemplo é a demarcação de terras indígenas. Na promulgação, foi fixado prazo de cinco anos para que todas fossem demarcadas. O prazo não foi cumprido até hoje e as demarcações seguem pendentes e são discutidas em diferentes processos no STF.
“O Supremo é provocado e acaba atuando, beirando, praticamente, o ativismo judicial, o que não é bom”, afirma o ministro Marco Aurélio. Para ele, a existência de prazo sem sanção pelo descumprimento, como no caso das terras indígenas, acaba não surtindo efeitos. “O protocolo do Judiciário está sempre aberto para segmentos que se digam prejudicados e o Supremo acaba tendo que atuar num vácuo deixado pelo Congresso Nacional”, acrescenta.
Nesses 30 anos, o Congresso Nacional avançou, vagarosamente, na regulamentação de alguns pontos. Na legislatura passada, uma comissão com relatoria do senador Romero Jucá (MDB-RR) apresentou projetos sobre o trabalho doméstico, que foi aprovado, e para enquadrar a prática de terrorismo (que acabou regulamentada por outra proposta, enviada pelo governo). A comissão foi reeditada em 2015, mas desta vez sequer apresentou um relatório final.
A última tentativa foi em outubro do ano passado, quando o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), acertou com a presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia, que uma comissão especial regulamentaria os pontos pendentes até o aniversário de 30 anos da Constituição. Mas quase um ano depois o requerimento para criar a comissão nem chegou a ser votado.
A comissão teria “superpoderes”, para puxar projetos já em discussão em outras comissões, dar parecer e mandá-los direto para o plenário. Por isso, precisa do requerimento para ser criada. Mas há dois focos de resistência: deputados que não querem perder a relatoria dos projetos e partidos que acharam o escopo do colegiado muito amplo, com possibilidade de agilizar pautas polêmicas.
Segundo o deputado Rubens Pereira Júnior (PCdoB-MA), que seria o presidente do colegiado, a ideia era trabalhar apenas no que o Judiciário já regulamentou ou que é consenso no Parlamento e na sociedade. “Nosso foco são aquelas omissões em que o Judiciário tem se manifestado. Em regra, é concordando [com a decisão judicial], mas é lógico que o Legislativo tem autonomia para decidir diferente”, diz.
Os temas conflituosos, como o imposto sobre grandes fortunas, ficarão para a próxima legislatura. “Já são 30 anos de conflitos, não é agora que vamos conseguir”, afirma o deputado, que tem esperança de que, após a eleição, seja possível votar parte dos projetos no último bimestre.
No caso do imposto sobre grandes fortunas, o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), aliado do deputado Rubens Pereira Júnior, chegou a pedir, em ação de inconstitucionalidade por omissão, que o STF solucionasse o assunto até o Congresso se manifestar. A ação foi extinta por falta de legitimidade dele para fazer o pedido.
“A comunidade não espera que o Congresso vá resolver e bate à porta de quem ela acha que vai conceder o direito”, afirma o advogado Saul Tourinho, do escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia. Para ele, o fato de apenas 28 dos 382 temas que a Constituição deixou para serem regulamentados não serem objeto de nenhuma proposta legislativa indica que o Congresso está trabalhando, mas que setores interessados conseguiram travar as discussões.
Professor da FGV Direito Rio, Thomaz Pereira diz que o vácuo pode ocorrer, também, porque uma ideia que tinha apoio no Congresso em 1988 pode não ter agora. “A Constituição é um produto das forças políticas representadas na Constituinte. Mas as forças políticas são dinâmicas.”
Por Beatriz Olivon e Raphael Di Cunto | De Brasília
Fonte : Valor-30/07/2018