No contexto das novas tecnologias, têm sido travadas inúmeras discussões acerca das formas de tributação dos modelos negociais disruptivos, os quais possibilitaram a criação de conglomerados empresariais que atuam de forma inovadora no mercado por meio da internet. É incontestável que, na seara tributária, está ocorrendo um deslocamento dos agentes reguladores da tributação, tendo em vista que a tecnologia ao modificar as formas de agrupamento da atividade empresarial, impacta sobremaneira na adequação do ordenamento jurídico posto.
A evolução da chamada “economia digital” tornou incerta e, muitas vezes, de difícil aplicação as regras de tributação originalmente concebidas. Assim, conceitos enraizados em nosso ordenamento — tais como os conceitos de estabelecimento permanente e mercadoria — foram modificados de tal maneira que, atualmente, admite-se conceitualmente a existência de mercadorias virtuais e intangíveis, assim como é absolutamente compreensível o fato de uma empresa fornecer bens e serviços a clientes situados nas mais diversas jurisdições, sem que seja necessário, para tanto, o estabelecimento de qualquer presença física nessas localidades.
Atividades como cloud computing, e-commerce, jogos on-line e streaming, são exemplos de atividades feitas na internet, que, ao longo dos últimos anos, movimentaram cifras bilionárias. Exemplo disso é o fato de que, as cinco empresas mais valiosas do mundo (Google, Amazon, Apple, Facebook e Microsoft) pertencem ao setor de tecnologia. Essas empresas geraram, em conjunto, mais de US$ 25 bilhões de lucro líquido, só no primeiro semestre de 2017, o que denota a elevada capacidade contributiva das atividades desempenhadas no setor[1].
No Brasil, não haveria de ser diferente. O crescimento da internet foi igualmente vertiginoso sendo estimado que o comércio varejista on-line (e-commerce) apresentou crescimento real de 290,4% no período compreendido entre 2007 e 2014[2]. Além disso, nossos consumidores também aderiram à era dos aplicativos de download de músicas e vídeos como Spotify e Netflix, o que de certa forma, nos coloca no mesmo ciclo evolutivo das economias modernas mundiais.
Porém, ao mesmo tempo em que a sociedade brasileira aderiu ao consumo da economia digital, o olhar das autoridades fazendárias brasileiras para essas atividades é muito diferente da percepção internacional. No Brasil, a transição de uma economia de consumo baseada principalmente em atividades de fornecimento de mercadorias, para modelos negociais que carregam em sua essência uma forte influência do caráter “prestação de serviços”, abriu espaço para disputas entre estado e município tentando enquadrar, a qualquer custo, as atividades para o âmbito de suas respectivas competências.
Internacionalmente, devido a menor complexidade do sistema tributário e a existência de um imposto único incidente sobre o consumo (IVA) a discussão vai muito além do conflito de competência. São discutidos entre as 19 maiores economias do mundo e a União Europeia (G-20), planos de ação destinados a combater o que se denominou erosão das bases tributárias e transferência artificial de lucros (BEPS) isso porque, as regras tributárias internacionais construídas ao longo do século passado, se tornaram insuficientes para combater a crescente possibilidade de planejamentos fiscais no contexto da economia digital em que desapareceram, conforme já mencionado, conceitos basilares ao ordenamento tributário como a existência de estabelecimento permanente.
Direcionando nossos olhares à realidade do nosso ordenamento jurídico tributário, temos que a principal discussão envolvendo a economia digital ocorre em âmbito estadual e municipal, portanto, na incidência do ICMS e do ISS. Chama a nossa atenção, especialmente, o desconhecimento tecnológico do legislador estadual no que concerne à regulamentação da incidência do ICMS nas atividades de armazenamento em nuvem. Vejamos.
É sabido que o Convênio 106/2017 equiparou à mercadorias os bens digitais transferidos via download fazendo incidir ICMS sobre operações com bens digitais padronizados que sejam transferidos via download ou acessados em nuvem e também sobre o conteúdo de áudio, vídeo, imagem e texto. Num primeiro momento, a redação do Convênio parece abarcar todas as operações de download de vídeos, até mesmo o streaming em que não há sessão definitiva de conteúdo, porém, acertadamente o estado de São Paulo publicou a Portaria 24/2018 que assim dispõe em seu artigo 1º:
Artigo 1º – Nas operações com bens e mercadorias digitais realizadas por meio de transferência eletrônica de dados destinadas a consumidor final domiciliado ou estabelecido no Estado de São Paulo deverão ser observadas as disposições desta portaria.
Parágrafo único – Para fins do disposto nesta portaria, são considerados bens e mercadorias digitais todos aqueles não personificados, inseridos em uma cadeia massificada de comercialização, como eram os casos daqueles postos à venda em meios físicos, por exemplo:
1 – softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres, que sejam padronizados (de prateleira), ainda que tenham sido ou possam ser adaptados, independentemente de serem utilizados pelo adquirente mediante “download” ou em nuvem;
2 – conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto, com cessão definitiva (“download”), respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos.
(grifos nossos)
Na redação do artigo supramencionado percebemos que foram excluídas do âmbito de incidência do ICMS as operações de streaming que possibilitam a visualização de conteúdo de vídeo sem sessão definitiva, mediante o pagamento de uma remuneração à plataforma que disponibiliza o conteúdo aos seus usuários (Por exemplo: Netflix). Pensamos que o legislador estadual paulista agiu acertadamente ao excluir o streaming da tributação pelo ICMS mesmo porque, o cerne da atividade é uma prestação de serviço, prevista, inclusive, no item 1.09 da lista anexa à Lei Complementar 116/2013 o que legitima a cobrança do ISS pelos municípios.
Porém, com relação ao acesso ao software diretamente na nuvem, na modalidade chamada Software as a Service (SAAS) a manutenção da incidência do ICMS mediante a utilização do critério “padronização” nos parece equivocada. Vejamos a definição da Microsoft acerca do que venha a ser o SAAS[3]:
Software as a service (SaaS) allows users to connect to and use cloud-based apps over the Internet. Common examples are email, calendaring, and office tools (such as Microsoft Office 365).
SaaS provides a complete software solution that you purchase on a pay-as-you-go basis from a cloud service provider. You rent the use of an app for your organization, and your users connect to it over the Internet, usually with a web browser. All of the underlying infrastructure, middleware, app software, and app data are located in the service provider’s data center. The service provider manages the hardware and software, and with the appropriate service agreement, will ensure the availability and the security of the app and your data as well. SaaS allows your organization to get quickly up and running with an app at minimal upfront cost.[…]
Advantages of SaaS
Gain access to sophisticated applications. To provide SaaS apps to users, you don’t need to purchase, install, update, or maintain any hardware, middleware, or software. SaaS makes even sophisticated enterprise applications, such as ERP and CRM, affordable for organizations that lack the resources to buy, deploy, and manage the required infrastructure and software themselves.
Pay only for what you use. You also save money because the SaaS service automatically scales up and down according to the level of usage.
Use free client software. Users can run most SaaS apps directly from their web browser without needing to download and install any software, although some apps require plugins. This means that you don’t need to purchase and install special software for your users.
Mobilize your workforce easily. SaaS makes it easy to “mobilize” your workforce because users can access SaaS apps and data from any Internet-connected computer or mobile device. You don’t need to worry about developing apps to run on different types of computers and devices because the service provider has already done so. In addition, you don’t need to bring special expertise onboard to manage the security issues inherent in mobile computing. A carefully chosen service provider will ensure the security of your data, regardless of the type of device consuming it.
Access app data from anywhere. With data stored in the cloud, users can access their information from any Internet-connected computer or mobile device. And when app data is stored in the cloud, no data is lost if a user’s computer or device fails.
(grifos nossos)
Conforme se depreende na própria definição do conceito de Software As A Service, a tecnologia embarcada no acesso aos softwares em nuvem, é muito mais do que a simples padronização de um sistema de armazenamento de dados. Por meio da nuvem, é possível a utilização de funções inteligentes e ajustáveis conforme a necessidade de cada usuário, o que descaracteriza completamente o fator “padronização”.
O avanço tecnológico, que possibilitou o acesso ao conteúdo dos programas de computador pela nuvem, não se coaduna ao conceito de que mercadoria é o bem padronizado. Há interação entre o usuário e o software por meio da inserção de funcionalidades ajustáveis, e haverão portanto, diferentes maneiras de utilização e acesso a determinado programa de computador, o que não permite a equiparação das operações na nuvem ao download de software conforme pretendido pelo Fisco Paulista.
E mais. O pagamento pela utilização do programa na nuvem será feito pelo usuário de acordo com a sua necessidade, havendo variação no preço cobrado de acordo, inclusive, com o nível de utilização das funcionalidades. Logo, a partir do momento em que há personalização do programa, perde-se a característica imprescindível para a incidência do ICMS, qual seja, a padronização.
Portanto, diante desse cenário, seguimos sem uma resolução definitiva acerca do enquadramento tributário a ser dado nas operações estabelecidas em nuvem e o que é pior, prosseguimos na insegurança jurídica própria das “guerras fiscais” o que levará aos contribuintes judicializarem os conflitos em busca de uma solução que traga a certeza necessária para o conhecimento do ente competente a cobrar e receber a arrecadação do tributo incidente nas operações em nuvem.
[1] Nesse sentido, a publicação The Economist, veiculou interessante publicação afirmando que as atividades de tecnologia são o “petróleo” da era digital, em alusão à commodity que exerceu papel predominante na economia global ao longo do século XX. Disponível em: http://economist.com/news/leaders/21721656-data-economy-demands-new-approach-antitrust-rules-words-most-valuable-resource. Acesso em 10 de maio de 2018.
[2] Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2016-08/comercio-movimentou-r-3-trilhoes-e-ocupou-107-milhoes-de-pessoas-em-2014. Acesso em 09 de maio de 2018.
[3] Disponível em: https://azure.microsoft.com/en-us/overview/what-is-saas/. Acesso em 10 de maio de 2018.
Por Vicente do Carmo Sapienza Filho
Vicente do Carmo Sapienza Filho é especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas – GVLAW. Membro efetivo do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP. Sócio de Vicente Sapienza Sociedade de Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 25 de julho de 2018.