O artigo 150, parágrafo 7º da Constituição Federal de 1988 admite a exigência do ICMS relativamente a operações futuras (substituição tributária “para frente”), desde que seja assegurada, por outro lado, a “imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido”[1]. Previsão semelhante há na Lei Complementar 87/1996.
Muitos estados vinham interpretando essa cláusula final do dispositivo constitucional no sentido de que a restituição seria devida apenas nos casos em que o fato gerador presumido, que serviu de base para o recolhimento antecipado do imposto, não se realizasse (por exemplo, quando a mercadoria fosse furtada). Tais estados não admitiam a restituição nas situações em que o fato gerador presumido fosse realizado numa realidade econômica inferior àquela que serviu de base para retenção (por exemplo, o preço final praticado é inferior ao fixado pela legislação).
Esse entendimento foi encampado pelo Supremo Tribunal Federal, que, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.851/AL (Pleno, rel. min. Ilmar Galvão, DJ de 22/11/2002), entendeu que o contribuinte somente teria direito à restituição do imposto pago no caso da venda presumida não se realizar (não ocorrência do fato gerador), atribuindo ao fato gerador presumido a característica de definitivo, e não de provisório.
Mais recentemente, em 2016, o STF reviu a questão e alterou o seu posicionamento anterior, declarando a inconstitucionalidade da vedação à restituição do excesso quando o fato gerador do ICMS-ST for em montante inferior ao pressuposto pela administração pública.
O Supremo analisou três ações: duas ações diretas de inconstitucionalidade e um recurso extraordinário em repercussão geral.
A ADI 2.675 foi proposta contra o inciso II, do artigo 19, da Lei 11.408/96 de Pernambuco, que permite a restituição do ICMS-ST quando o fato gerador ocorrer em montante inferior ao presumido. A ADI 2.777 foi proposta contra o inciso II do artigo 66-B da Lei 6.374/89 de São Paulo, na redação dada pelo artigo 3º da Lei 9.176/95, de caráter semelhante à lei de Pernambuco.
No RE 593.849/MG, a contribuinte pretendeu, em sede de MS preventivo, declarar o seu direito de compensar o ICMS recolhido a maior nas operações realizadas sob a sistemática da substituição tributária em que o valor final da operação ocorresse em montante inferior ao presumido pelo Fisco de Minas Gerais, segundo sua interpretação do artigo 150, parágrafo 7º da CF/88. Para tanto, requereu a declaração de inconstitucionalidade dos artigos 73 a 109 do Anexo XV do RICMS daquele estado.
O STF, por maioria, declarou o direito dos contribuintes à restituição do montante recolhido a maior quando o fato gerador ocorresse em dimensão inferior à presumida à luz do artigo 150, parágrafo 7º da CF/88.
A tese ficou assim resumida: “É devida a restituição da diferença do Imposto de Circulação de Mercadorias – ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida” (Tese 201 de repercussão geral).
Não obstante a clareza do posicionamento do STF sobre a questão, o Fisco do estado de São Paulo concluiu que a devolução do imposto estadual se aplica apenas na hipótese de fixação de base de cálculo por autoridade competente, conforme se percebe da Portaria CAT 42, de 21.05.p.p., que criou um sistema para ressarcimento do imposto pago por substituição tributária, e o Comunicado CAT 6, também de 21.05.p.p. que esclarece a posição do Fisco quanto à devolução do imposto:
“Comunica que, nos termos do Parecer PAT 03/2018, somente haverá direito ao ressarcimento do imposto pago antecipadamente pelo regime de substituição tributária, em virtude de operação final com mercadoria ou serviço com valor inferior à base de cálculo presumida, nas situações em que o preço final a consumidor, único ou máximo, tenha sido autorizado ou fixado por autoridade competente (§ 3º do artigo 66-B da Lei estadual 6.374/1989).
Nos casos em que a base de cálculo do ICMS devido por substituição tributária não é fixada nos termos do artigo 28 Lei estadual 6.374/1989 (preço final a consumidor, único ou máximo, autorizado ou fixado por autoridade competente), não será objeto de ressarcimento o valor do imposto eventualmente retido a maior, correspondente à diferença entre o valor que serviu de base à retenção e o valor da operação realizada com consumidor final”.
Assim, é evidente que o Fisco do estado de São Paulo não observou o decidido pelo STF nos julgamentos em questão, conforme reconhecimento expresso do Parecer PAT 03/2018, citado pelo Comunicado CAT 6/2018, elaborado pela PGE de São Paulo para analisar a extensão do julgamento da ADI 2.777, decidida em conjunto com o RE 593.849/MG, submetido ao rito da repercussão geral:
“33. Portanto, é certo que no curso do julgamento da ADI a lei paulista sofreu alteração não submetida a julgamento, a ensejar sua normal aplicação pela Administração Tributária, pois a regra do parágrafo terceiro do artigo 66-B da Lei nº 6.374/89 não foi objeto de decisão na ação direta. Por outro lado, também é certo que no julgamento do recurso extraordinário, que pautará as decisões sobre casos concretos pelo judiciário, não houve qualquer entrave à extensão do artigo 150, § 7°, da Carta Política às hipóteses de base de cálculo real menor que a presumida, independentemente da legislação local.
34. Em conclusão, a Administração Tributária deve aplicar, como regra, o artigo 66-B, II, e § 3° da Lei estadual nº 6.374/89, podendo indeferir todos os pedidos de restituição que não sejam de preços fixados por autoridade competente, por inaptos perante a legislação em vigor.
35. Entretanto, diante da decisão do Recurso Extraordinário 593849, é fundamental que o indeferimento tenha substrato também em fatos sustentáveis, ou seja, que a base de cálculo do ICMS substituição tributária, em todos os casos, seja fixada o mais próximo possível da realidade de cada mercado. Dito de forma simples, o indeferimento de pedidos de restituição, para todos os casos diversos de preços tabelados, de ICMS pago a maior por base de cálculo presumida maior que a efetivamente praticada tem que se fundar em dois pontos: a falta de previsão legal para a hipótese e o fato de que a base de cálculo presumida está de acordo com preços reais de mercado, em atenção aos parâmetros do artigo 10 da Lei Complementar nº 87 /96”.
Percebe-se que a PGE de São Paulo reconhece que esse posicionamento colide com o quanto decidido pelo STF, visto as assertivas de que, “no julgamento do recurso extraordinário, que pautará as decisões sobre casos concretos pelo judiciário, não houve qualquer entrave à extensão do artigo 150, § 7°, da Carta Política às hipóteses de base de cálculo real menor que a presumida, independentemente da legislação local”.
Merece severa censura o posicionamento do Fisco paulista, corroborado pela própria PGE de São Paulo, visto que, por razões meramente arrecadatórias, há a restrição indevida do posicionamento exarado pelo STF sobre a questão. Não há dúvida de que a decisão proferida no recurso extraordinário com reconhecimento de repercussão geral vincula os demais órgãos do Judiciário. A natureza vinculativa dessa decisão resulta implícita da própria técnica de seleção dos temas constitucionais que devam ser examinadas pela corte suprema. É o que Luiz Guilherme Marinoni denomina de “efeito pan-processual, no sentido que se espraia para além do processo em que fora acertada a inexistência de relevância e transcendência”[2].
Esse também é o posicionamento da jurisprudência firmada sob à égide do Código de Processo Civil de 2015 (vinculação dos tribunais inferiores ao quanto decidido pelo Supremo em sede de repercussão geral):
“Registro, aliás, que o Código de Processo Civil de 2015 privilegia a adoção de um sistema de vinculação aos precedentes, de modo que os tribunais deverão uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente, nos termos do seu art. 926, caput. Com esses objetivos, mesmo os precedentes fixados por meio do controle difuso de constitucionalidade devem, em princípio, ser observados. Em suma, extrai-se do referido diploma legal, o nobre propósito de conferir ao sistema judiciário nacional maior dose de estabilidade, integralidade e coerência (art. 926), características indispensáveis para assegurar aos jurisdicionados tratamento mais isonômico não apenas na lei e perante ela, mas também na sua aplicação, com reflexos na economia dos atos processuais, na duração dos processos e, por conseguinte, na confiança na escorreita e eficaz atuação do Poder Judiciário” (HC 375.261, ministro Rogério Schietti Cruz, DJ 20/10/2016).
Além do mais, no caso concreto do RE 593.849/MG, o STF proveu o recurso extraordinário do contribuinte e modulou os efeitos de sua decisão para que valesse apenas para frente, “ressalvados os processos judiciais pendentes”. Isto é, “modulados os efeitos a fim de se aproveitarem desta interpretação agora dada todos os processos que estejam em juízo ou que estejam sobrestados” (ministra Cármen Lúcia). Em outras palavras, “a nova orientação firmada só deve ser aplicada a fatos geradores ocorridos após esta decisão” (ministro Roberto Barroso).
A tese foi fixada em repercussão geral com a modulação de efeitos, razão por que se estende para as demais leis estaduais que, assim como a de MG, vedavam a restituição do excesso na hipótese de realização do fato gerador a menor, o que inclui a citada legislação paulista (parágrafo 3º do artigo 66-B da Lei estadual 6.374/1989), que limita a restituição apenas nas situações em que o preço final a consumidor, único ou máximo, tenha sido autorizado ou fixado por autoridade competente.
Ou seja, o fato de o caso concreto julgado em repercussão geral reportar-se à legislação de Minas Gerais não significa que sua eficácia se circunscreverá àquela lei. A tese fixada (ratio decidendi) alcançará todas as legislações similares que estejam em debate em processos judiciais específicos.
A despeito da evidente vinculação dos órgãos do Poder Judiciário em relação a uma decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em sede de repercussão geral, também a administração pública deveria seguir o referido posicionamento.
Isso porque a não observância de uma decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, com repercussão geral pela administração pública, contraria, dentre outros, os princípios constitucionais da segurança jurídica, legalidade, moralidade e eficiência (trata-se de procedimento a ser evitado a todo custo, sob pena de onerar o erário em caso de demanda judicial acerca do tema, a qual, fatalmente, condenará a Fazenda em honorários de sucumbência).
Paradoxalmente, o equivocado posicionamento do Fisco paulista acerca do direito ao ressarcimento do imposto pago antecipadamente pelo regime de substituição tributária é tornado público na mesma época da edição da Lei Complementar 1.320, de 6 de abril de 2018, que instituiu o Programa de Estímulo à Conformidade Tributária, conhecida como “Nos Conformes”, a qual define princípios para o relacionamento entre os contribuintes e o estado de São Paulo e estabelece regras de conformidade tributária.
Referida legislação, como se sabe, tem como um dos seus objetivos diminuir a litigiosidade e incentivar os contribuintes a se enquadrarem na qualidade de bons pagadores para que, assim, possam usufruir de benefícios concedidos pela administração tributária como, por exemplo, a otimização no cumprimento de obrigações acessórias e a restrição de autuações fiscais.
De um lado, temos uma inovadora legislação complementar do estado de São Paulo, cujo principal objetivo é diminuir o litígio entre Fisco e contribuinte, ao pretender instituir um ambiente colaborativo entre eles. De outro lado, temos o Fisco paulista mantendo o seu comportamento arrecadatório, desrespeitando posicionamento exarado pelo Supremo Tribunal Federal em sede de repercussão geral, o qual declarou o direito dos contribuintes à restituição do montante recolhido a maior quando o fato gerador ocorrer em dimensão inferior à presumida, sem qualquer restrição.
Assim, não restará outra alternativa aos contribuintes que se sentirem prejudicados pelo posicionamento exarado pelo Fisco de São Paulo que não se socorrer do Poder Judiciário, afastando os óbices já comentados e assegurando a restituição das referidas diferenças de ICMS-ST em sua integralidade.
[1] Parágrafo 7º acrescentado pela EC 3, de 17/3/2003.
[2] Repercussão geral no recurso extraordinário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 52.
Por Luiz Carlos Fróes Del Fiorentino
Luiz Carlos Fróes Del Fiorentino é advogado tributarista do Dias de Souza Advogados Associados e mestre em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP).
Revista Consultor Jurídico, 4 de julho de 2018.
https://www.conjur.com.br/2018-jul-04/luiz-fiorentino-icms-recolhido-maior-posicao-fisco-sp