Quando promulgado em 1794, o Código Prussiano já continha quase 20 mil artigos. Com inspiração jusracionalista no Espírito das Leis, de Montesquieu (“o juiz é a boca da lei”), a intenção do Imperador Frederico “O Grande” (Friedrich Wilhelm II) era regular todas as situações fáticas, por mais específicas que fossem, atingindo-se o máximo nível de detalhamento, de forma que fosse à prova de interpretação. O juiz que ousasse interpretar o código incidiria na “grande ira” de Frederico e seria severamente castigado[1].
Transcorridos mais de dois séculos, o positivismo-formalista do século XVIII experimentaria em todos os sistemas jurídicos uma evolução. Os principais positivistas do século XX, como Hans Kelsen e Herbert L. A. Hart, admitiam a função criativa do juiz dentro dos contornos de uma “moldura legal”; portanto, o texto da lei seria suscetível de interpretação para, no caso concreto, construir-se a norma aplicável[2].
Apesar dessa grande evolução, quando a dogmática brasileira importou o positivismo, ignorou dois séculos de evolução para aplicar no Brasil não a versão mais atual, mas o formalismo à imagem do pensamento original de Montesquieu, como o fez o Imperador Frederico, da Prússia, Napoleão e outros déspotas da época. No Direito Tributário, ressuscitou-se a pretensiosa concepção, própria do Direito Penal, de uma “tipicidade cerrada” como roteiro para o aplicador da lei, numa visão de que a legislação seria capaz de encapsular todos os fatos econômicos.
A autoridade tributária constataria o fato, identificaria a regra jurídica aplicável e, mecanicamente, subsumiria o fato ao texto legal, realizando o lançamento tributário; do contrário, sempre que o fato não se revestisse das exatas características descritas no texto, nenhum tributo seria devido. Não precisaria dizer o quanto essa concepção protagonizou desigualdades por meio de criativas e engenhosas arquiteturas tributárias minuciosamente planejadas para frustração do dever fundamental de pagar tributos, principalmente pelos maiores contribuintes, aqueles que dispõem de melhores “escudos de proteção”.
Solícita aos interesses predominantemente econômicos, a liderança política da época incorporou em nosso Código Tributário Nacional (CTN) as teorias formalistas forjadas pela dogmática do Direito Tributário oriunda do pensamento acadêmico dominante[3]. Com efeito, uma das regras do CTN mais divorciadas da realidade é a contida no artigo 142, parágrafo único:
“A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional“.
A parte final do dispositivo reforça que é máximo o grau de vinculação administrativa da autoridade responsável por verificar se o fato constatado é gerador de obrigação tributária, e simboliza “uma espada sobre a cabeça” da autoridade tributária que, temerosa, se vê “encarcerada” ao formalismo do século XVIII.
É como se nossa legislação tributária, milagrosamente, tivesse alcançado o utópico resultado pretendido com o código prussiano de 1794. Nela haveria um texto detalhado ao extremo, de clareza incontestável, livre de qualquer omissão ou obscuridade; restando assim à autoridade tributária a singela tarefa de direta e imediatamente aplicá-lo aos fatos concretos, que também seriam sempre simples, previsíveis e cotidianos. Assim fosse, de fato, não haveria margens para valorações por parte dessa autoridade.
Para a realização da segurança jurídica, de certo, essa utopia encontraria suas virtudes; no entanto, infelizmente, nossa legislação tributária se caracteriza por ser justamente o oposto. A autoridade tributária atua sobre um largo espectro legal e normativo, que inclui todos os tributos federais e a aduana brasileira, deparando-se, em seu dia a dia, com omissões, obscuridades e contradições nos milhares de dispositivos legais, além dos conflitos de competência com outros entes da federação.
De fato, a sociedade pós-moderna, sujeita a riscos incontroláveis, em nada mais se parece com a organização social e econômica do século XVIII[4]. O pensamento formalista mostra-se impotente para “dizer o direito” nos casos mais difíceis. Os hardcases, a cada dia e a passos largos, ao menos quando consideramos a relevância dos créditos tributários envolvidos, vêm se tornando regra, e não mais exceção[5]. Apesar dessa realidade, injustificadamente, o formalismo no Direito Tributário brasileiro se mantém hegemônico até nossos dias atuais. Uma elite política e intelectual impõe o pensamento retrógrado. Como veremos adiante, esse influxo ao pensamento de dois séculos atrás não é despropositado.
Conforme apontamos, a versão formalista do século XVIII evoluiu para um positivismo no século XX, onde se admite a função criativa do intérprete. Contudo, essa evolução ainda não seria suficiente para encontrar soluções jurídicas para todos os casos, principalmente os hardcases. Assim, o constitucionalismo contemporâneo surge com uma nova dogmática, quando a liberdade e autonomia do julgador passam a ser valorizadas e se tornam instrumentais para o intérprete e aplicador do Direito. Ronald Dworkin ilustra essa realidade com a metáfora do “juiz hércules”, como aquele intérprete com qualidades excepcionais (conhecimento técnico, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas) que sempre encontra a melhor solução em cada caso[6].
No Direito Tributário brasileiro, tivéssemos que identificar um trabalho “hercúleo”, esse seria o da autoridade tributária. Apesar da inquestionável relevância das instâncias judiciais e administrativas que atuam sobre os créditos tributários constituídos, sobretudo pelo conhecimento jurídico amplo, o auditor fiscal é o responsável pelo lançamento em todas as dimensões do crédito tributário: qualitativa, quantitativa, temporal e subjetiva.
Para a realização do lançamento tributário, a autoridade tributária valora um caso concreto em seu estado natural, pesquisa dentre o universo de regras jurídicas a que melhor se aplica, interpreta seu sentido para o caso sob exame, decide se esse caso é ou não gerador da obrigação tributária, e muitas vezes também decide a respeito de outros reflexos (prática de crime, infração administrativa e incidência cumulativa de outros tributos, necessidade de medidas acautelatórias do crédito tributário etc). E não termina aí. Tendo profundamente estudado toda a dimensão qualitativa do crédito tributário, inicia-se a fase de quantificação do tributo, da multa, dos juros legais e, por fim, a formalização do lançamento.
Uma vez realizado o lançamento tributário, constituído o crédito com todas as suas dimensões, é de se esperar que o resultado dessa atividade cognitiva pela interpretação jurídica da legislação tributária possa suscitar divergências; afinal, quanto maior a complexidade da legislação, maior a litigiosidade em torno de sua interpretação e aplicação aos casos concretos. Com a discordância sobre algum elemento do lançamento tributário, inicia-se o processo administrativo tributário, de forma que o contribuinte possa, através de várias instâncias recursais, exercer seu direito de defesa, apresentando suas considerações sobre as inúmeras questões controvertidas. Essa segunda fase também é conduzida pelas autoridades tributárias.
Infelizmente, apesar de toda sua relevância e complexidade, como aqui expusemos, as lideranças políticas encarceraram a auditoria tributária entre as “grades” do formalismo. Exemplo disso são as instruções normativas expedidas pela Receita Federal, com efeito vinculante em relação às autoridades tributárias, que, em lugar de esclarecer a aplicação da lei, trazendo segurança jurídica para o contribuinte, inovam ou a tornam ainda mais confusa, o que tem provocado judicializações que poderiam ser evitadas caso prevalecessem o bom senso e a ponderação. Como exemplo recente, entendeu o STJ, sob o rito dos repetitivos, que são ilegais as instruções normativas da SRF 247/2002 e 404/2004, por comprometer a eficácia do regime de não cumulatividade da contribuição do PIS e da Cofins.
Como resultado dessa concentração do poder decisório na cúpula do órgão, chegou-se a um hipertrofiado acervo de processos em tramitação, uma verdadeira aberração que torna o sistema de constituição e cobrança dos créditos tributários impossível de ser gerenciado. No Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), última instância do processo administrativo tributário, são 120 mil processos pendentes de julgamento, representando R$ 614 bilhões, aos quais se somam outros 200 mil sob apreciação das delegacias de julgamento da Receita Federal (DRJ). Em valores atualizados, o total ultrapassa R$ 1 trilhão em contencioso administrativo.
Esses dados não seriam tão preocupantes caso a maioria desses créditos tributários ingressasse como receitas públicas, mas a realidade é muito diferente. Segundo recente relatório da PGFN, o estoque da dívida ativa da União em 2017 estava em torno de R$ 2 trilhões, dos quais foram recuperados no ano R$ 26,1 bilhões. Ou seja: apenas 1,3% da dívida é recuperado anualmente.
Portanto, quando em uma análise de macroprocesso do crédito tributário, desde a sua constituição através do trabalho da autoridade tributária, passando pelo julgamento dos recursos do contribuinte, até a efetiva cobrança administrativa (pela Receita) ou judicial (pela PGFN), deparamo-nos com uma realidade preocupante. É um sistema ineficiente com iniciativas de soluções que reiteradamente visam ao “alvo” errado. A dissonância entre a concepção formalista na fase administrativa, apegada à literalidade do texto legal, e a interpretação mais ampla de acordo com o Direito, pelo juiz, contribui para o resultado pífio na recuperação judicial desses créditos.
É certo que o longo tempo de tramitação dos processos contribui para a frustração da cobrança, como demonstram os números, mas não é esse o problema principal. A elite política atraiu para si o poder decisório cuja titularidade, natural e legalmente, pertence à autoridade tributária: a prerrogativa de interpretação e aplicação da legislação tributária para se decidir no caso concreto sobre a constituição ou não do crédito tributário. Não é sem razão que o Regimento Interno da Receita, estabelecido por portaria do Ministério da Fazenda, concentra poder decisório nas mãos dos chefes de unidade (delegados da Receita Federal) e da alta cúpula do órgão.
O influxo ao formalismo de que discorremos, de fato, não é despropositado. É imposta à autoridade tributária, sob pena de responsabilidade funcional, que não interprete a legislação, apenas a aplique literalmente, tal como pretendera há mais de dois séculos o Imperador Frederico “O Grande” com seu Código Prussiano de 1794.
A função interpretativa é reservada aos gabinetes de Brasília. E como se constata pelos resultados pífios na recuperação de créditos tributários, essa imposição da elite política tem custado caro à sociedade brasileira e ao mesmo tempo favorecido negociações seletivas, sem qualquer transparência, que envolvem Executivo e Legislativo.
Nos últimos 17 anos, foram mais de 30 medidas para anistia de multas tributárias, renúncia aos juros moratórios e parcelamentos “a perder de vista” dos valores remanescentes, fazendo da sonegação no Brasil um negócio vantajoso. E embora aprovadas sob um suposto propósito de recuperação fiscal de empresas em dificuldade, tais programas vêm sendo utilizados pelas maiores e mais lucrativas empresas, que pulam de um programa para o outro, sempre atrás do maior desconto possível. Também não há qualquer estudo sobre algum reflexo positivo desses programas para o equilíbrio das contas públicas ou outro interesse público. Ao contrário, os chamados “Refis” vêm deseducando os contribuintes, com benesses a sonegadores e inadimplentes, fomentando a percepção daqueles que honram com suas obrigações com o Fisco de que, no Brasil, não vale a pena pagar tributo.
Qualquer atividade, das mais simples às mais complexas, demanda investimentos. E não é diferente com o trabalho das autoridades tributárias; no entanto, essa não é uma prioridade no órgão. Na aparência pode até convencer, mas não é de verdade. Como exemplo, para a progressão funcional dos auditores fiscais, um dos requisitos é a participação em cursos de especialização, o que aparentemente seria uma iniciativa louvável como incentivo para o desenvolvimento profissional; contudo, as restrições impostas evidenciam um desvio de finalidade para que apenas as dificultem, o que desvaloriza e desmotiva ainda mais os ocupantes do cargo, principalmente os mais novos, que têm um caminho mais longo na carreira. Os cursos exigidos devem ser custeados pelo próprio auditor fiscal e somente os que vierem a ser concluídos no decurso do período de interstício serão considerados, ainda que já tenham sido diplomados anteriormente em níveis acadêmicos mais avançados, como mestrado e doutorado. Não há a menor coerência!
Concluindo, o sistema atual é voltado para a maximização quantitativa de autuações fiscais, indiferente à qualidade dos créditos constituídos. Numa espécie de imposição de “dificuldades para se negociarem facilidades”, uma “enxurrada” de autuações fiscais “deságua” sobre as delegacias de julgamento da Receita Federal e do Carf. Com isso, em troca do apoio eleitoral, as lideranças políticas “entram em campo” como salvadoras do contribuinte aprisionado pelo endividamento fiscal.
Esse assombroso cenário em torno do macroprocesso do crédito tributário somente encontrará solução quando os investimentos se voltarem para a efetiva valorização da autoridade tributária, sendo-lhe garantida a necessária autonomia para uma interpretação à luz do Direito, muito mais justa e republicana, sem privilégios ou perseguições.
[1] RADBRUCH, Gustav. O Espírito do Direito Inglês e a Jurisprudência Anglo-Americana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 47. MERRYMANN, John Henry e PEREZ-PERDOMO, Rogelio. The civil law tradition. Stanford: Stanford University Press, 2007, p. 39.
[2] HART, Herbert L. A. O conceito de direito. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005. p. 139.
[3] RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 10.
[4] A expressão “sociedade de risco” foi adotada por Ulrich Beck. BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010. p. 23.
[5] Na tradução, “casos difíceis”. DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambrige: Harvard University Press, 1978. p. 81.
[6] Ibid. p. 105.
Por Julio Cesar Vieira Gomes e Kleber Cabral
Julio Cesar Vieira Gomes é auditor-fiscal da Receita Federal, doutorando e mestre em Direito Tributário pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e ex-conselheiro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
Kleber Cabral é auditor fiscal da Receita Federal, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco Nacional).
Revista Consultor Jurídico, 8 de julho de 2018.
https://www.conjur.com.br/2018-jul-08/opiniao-desafios-autoridade-tributaria-pos-moderna