No dia 29 de março, foi publicado o Decreto 45.805/2018, mudando radicalmente a sistemática da substituição tributária do ICMS com liberação do imposto no estado de Pernambuco.
Em suma, desde 1º de abril, a Sefaz/PE passou cobrar a diferença a maior caso o valor da operação promovida pelo contribuinte seja superior ao que foi fixado como base de cálculo do imposto antecipado. Portanto, apesar de a legislação seguir utilizando a nomenclatura “com liberação”, o fato é que o estado pode cobrar o famigerado ICMS complementar, a posteriori, o que gera um enorme contrassenso fiscal.
Exemplificando: ao adquirir uma mercadoria, o contribuinte antecipa o ICMS que seria devido por ocasião da posterior revenda. Como, no momento da compra, não se sabe com exatidão qual será o valor praticado na venda, o estado de Pernambuco aplica métodos diversos para chegar à base de cálculo do ICMS-ST (substituição tributária). Daí sucedem duas situações:
- se o valor efetivo da operação for inferior ao que serviu de base para o ICMS antecipado, o contribuinte tem direito de requerer a restituição da diferença;
- se o valor efetivo da operação for superior ao que serviu de base para o ICMS antecipado, inexiste diferença a apurar, por se tratar da sistemática “com liberação”. Bem, isso até a publicação do Decreto 45.805/2018.
A partir de agora, a Sefaz/PE vai poder ir atrás da diferença, se a mercadoria for destinada a não contribuinte do ICMS ou a outra unidade da federação. Porém, existem gravíssimos problemas na postura do estado de Pernambuco.
Primeiro, há a situação de insegurança jurídica. É inaceitável que a Sefaz/PE implemente uma mudança tão radical por meio de decreto (sem amparo em lei formal); sem qualquer divulgação aos interessados (decreto publicado na véspera de um feriado prolongado); de aplicação imediata (sem respeitar a anterioridade); e mantendo a nomenclatura “com liberação”, quando o contribuinte não está liberado de nada.
Em segundo, o Decreto 45.805/2018 criou a estranha figura do lançamento de ofício, sem infração. Como se sabe, o ICMS se sujeita ao lançamento por homologação, no qual o próprio contribuinte apura e paga o imposto, se sujeitando a uma fiscalização a posteriori. Na nova modalidade, a eventual diferença não é apurada pelo contribuinte, e sim pelo Fisco, mas sem que isso configure uma infração (?!).
Por terceiro, como decorrência combinada das duas questões acima, o contribuinte do estado de Pernambuco não mais consegue calcular qual é a sua carga tributária efetiva. Se a Sefaz/PE nunca proceder ao ICMS complementar, o valor a ser pago será um. Por outro lado, ainda que esse contribuinte cumpra fielmente a legislação, poderá ser cobrado por diferenças relativas a competências anteriores, pagando uma conta que nem sequer imaginava existir. Só que ninguém (nem a Sefaz/PE) sabe ao certo qual será a abrangência do universo de contribuintes abrangidos pelo ICMS complementar.
De forma exemplificativa, eis alguns setores econômicos que podem estar sujeitos, ainda que no futuro, ao ICMS complementar: aguardente, autopeças, bebidas, celulares, cigarro, cimento, combustíveis e lubrificantes, cosméticos, eletroeletrônicos, materiais de construção, produtos farmacêuticos, veículos automotores etc.
Vale relembrar que a celeuma se iniciou em 2002, quando o então governador do estado ajuizou a ADI 2.675/PE, contra a legislação do seu próprio estado que concedia o direito à restituição administrativa em caso de pagamento antecipado a maior por parte dos contribuintes. Porém, a medida produziu o efeito inverso, pois, em 19/10/2016, o Supremo Tribunal Federal acabou entendendo que, sim, a devolução da diferença era devida.
Tal posicionamento provocou uma verdadeira corrida dos contribuintes à Sefaz/PE, sobretudo nos setores em que, historicamente, a cobrança a maior do ICMS-ST antecipado sempre se deu em patamares superiores ao real (combustíveis, veículos, dentre outros).
Como forma de proteção, se valendo de uma passagem do voto do ministro Teori Zavascki no julgamento do RE 593.849/MG (que não foi o relator do acórdão), foi concebida a ideia do texto normativo que redundou no Decreto 45.805/2018. Não obstante, apesar de o leitmotiv inicial ser apenas o desestímulo e/ou a minoração dos pedidos de restituição administrativa, a versão final do decreto acabou tendo uma amplitude muito maior do que a prevista, e com efeitos bastante nocivos. Isso sem contar a absoluta inexistência de fundamento legal para a cobrança.
Nesse sentido, é aconselhável que os contribuintes do estado de Pernambuco sujeitos à sistemática de substituição tributária do ICMS “com liberação do imposto” recorram às assessorias fiscal e jurídica para avaliar os impactos do novo Decreto 45.805/2018, bem como o cabimento de uma eventual medida judicial para obstar a cobrança. De igual modo, é importante que as entidades de classe exijam do governo do estado o mínimo de segurança jurídica do ponto de vista fiscal.
Por Ricardo Varejão
Ricardo Varejão é sócio titular da área de Direito Tributário do Queiroz Cavalcanti Advocacia. Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP.
Revista Consultor Jurídico, 26 de maio de 2018.