O ilícito tributário se distingue do crime de sonegação fiscal. Por maior que seja a obviedade da afirmação, é certo que grande parcela dos órgãos encarregados das investigações penais não reconhece – ou prefere não ver – essa diferença.
Deixar de recolher tributo, quando devido, sempre configurará atividade ilícita sob o ponto de vista administrativo-tributário. Contudo, a mesma conduta de não recolhimento de um tributo, quando devidamente declarado, não constitui atividade delituosa. Não pagar imposto, por si só, não pode gerar consequência criminal.
A configuração do crime contra a ordem tributária exige, para além do não recolhimento, a incidência de alguma das fraudes específicas, que estão descritas pela Lei 8.137/90. Dentre elas, há de se citar: informar ou prestar declaração falsa (art. 1, I) ou falsificar notas fiscais (art. 1, III).
O crime contra a ordem tributária exige, para além do não recolhimento, a incidência de algumas fraudes específicas
Acontece que o tratamento de certas condutas como se criminosa fossem – ainda que não guardem relação alguma com delito – tem se revelado de extrema utilidade para fins arrecadatórios do Estado. Isso decorre de uma particularidade da legislação brasileira, a qual prevê a extinção da punibilidade pelo pagamento do imposto. É dizer: pagando o imposto, o contribuinte não pode ser responsabilizado criminalmente.
Justamente por isso, inúmeros casos de meros ilícitos tributários são encaminhados diariamente para a esfera penal. Com o justo receio de ver recair contra si uma condenação penal, inclusive diante da possível perda de sua liberdade, o contribuinte paga o imposto, a multa e o que mais tiver pela frente, ainda que não concorde com a decisão tomada em sede administrativa. É o efeito simbólico do direito penal atuando em favor da atividade arrecadatória do Estado.
Ressalte-se que se fosse apenas pelo motivo do pagamento não haveria problema; o Estado, ainda que se valendo de certa “coação”, estaria apenas recebendo um valor que entende ser devido.
A grande problemática reside no fato de que há, nessa dinâmica toda, um perigoso desrespeito aos princípios mais basilares do direito penal, notadamente o mais relevante de todos: não há crime sem lei anterior que o defina.
Essa discussão, em uma dimensão específica, encontra-se em pauta no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Discute-se, no Recurso Especial nº 1.598.005, que se tornará o paradigma para futuras decisões (recurso repetitivo), se o fato de o contribuinte não ter recolhido ICMS em operações próprias, ainda que tenha declarado corretamente, poderia caracterizar conduta criminosa.
Há atualmente posições em ambos os sentidos naquela Corte. Porém, com o respeito devido a posições contrárias, e por tudo que se falou, seria absolutamente equivocado declarar que a ausência de recolhimento de ICMS, nesses casos, configuraria a prática delituosa. Isso porque, frise-se, o crime exige uma fraude típica (prevista em lei), e não se confunde apenas com a conduta de deixar de recolher imposto.
É certo que, aqueles que defendem a existência da prática criminosa, o fazem com base no artigo 2º, II da Lei 8.137/90. De acordo com tal dispositivo, constitui crime de sonegação quem “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”. Estaria aí, ainda segundo tal posição, a possibilidade de punir o mero não recolhimento de tributo.
Acontece que não. O artigo de lei é preciso ao punir apenas quem não recolhe tributo descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação. Trata-se de conduta própria de quem se apropria de valores que deveriam ser recolhidos em nome de terceiros (ex. substituição tributária). Não se cuida, obviamente, de conduta simples de não recolhimento de tributo por operações próprias, por meio das quais não foram descontados ou cobrados valores de nenhum contribuinte daquele imposto específico.
Não há dúvida de que o entendimento correto do assunto, único consentâneo com o nosso ordenamento jurídico, gerará inevitavelmente um impacto arrecadatório ao Estado, sendo essa, inclusive, uma das teses levantadas no processo a ser julgado pelo STJ.
No entanto, a liberdade dos cidadãos não pode ficar à mercê de interesses pecuniários contingenciais. É papel do Estado, acima de qualquer outro princípio, garantir que somente se punirá indivíduos por condutas claras e pré-estabelecidas em lei.
Por Daniel Zaclis
Daniel Zaclis é advogado, mestre e doutorando em processo penal pela Universidade de São Paulo (USP)
Fonte : Valor – 25/04/2018.