A pergunta que fica é: temos outras soluções para o contribuinte no campo tributário, em tempos de crise, para além dos parcelamentos extraordinários? A resposta é positiva: a solução proposta está na flexibilização das formas de pagamento dos tributos e a maior participação das empresas privadas, pontualmente em tempos de crise, na promoção e efetiva prestação de serviços sociais constitucionalmente garantidos. E o caminho é de alargamento de exemplos legislativos já existentes, visto que a prática não é nova. Vejamos.
A solução está na flexibilização de pagamento dos tributos e maior participação das empresas na prestação de serviços sociais
A Lei 12.688/2012 instituiu o Programa de Recuperação de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior (Proies), programa esse que garantiu a possibilidade de pagamento de 90% do passivo tributário federal das Instituições de Ensino Superior em grave situação econômica por meio de bolsas de estudo, garantindo a inserção gratuita no ensino superior de milhares de brasileiros de baixa renda.
Na mesma linha foi publicada a Lei 12.873/2013, que criou o Programa de Fortalecimento das Entidades Privadas Filantrópicas e das Entidades sem Fins Lucrativos que Atuam na Área da Saúde e que Participam de Forma Complementar do Sistema Único de Saúde (Prosus), e garantiu às Instituições de Saúde sem fins lucrativos e em grave situação econômica, a possibilidade de quitar seu passivo tributário com a União através do pagamento regular dos tributos correntes e aumento do número de atendimentos no Sistema Único de Saúde (SUS).
Diversos outros exemplos são vistos, especialmente em âmbito municipal, com destaque para o Decreto nº 42.928/2017 do município do Rio de Janeiro, que garante, através da prestação de serviços de saúde no SUS, com vistas a zerar a fila de atendimentos de procedimentos, exames e consultas, a remuneração dos prestadores por meio da compensação de débitos tributários existentes, utilizando-se como parâmetro a tabela do próprio SUS, afastando discussões de sobrepreço.
Os duros momentos de crise econômica, como a que o Brasil está mergulhado, trazem redução de empregos formais e descontinuidade de empresas. Ao Estado, o pleno comprometimento da manutenção e observância de direitos fundamentais sociais, tornando-se imperiosa a reflexão. Afinal, as mudanças nascem, sobretudo, nas crises.
Nesse triste cenário, os direitos sociais não podem ficar ao relento. E os sistemas jurídicos, dos quais não escapa o sistema tributário, devem prover soluções imediatas. Estamos nos referindo especialmente aos direitos sociais previstos no artigo 6º, da Constituição Federal. Vejamos: Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Podemos afirmar, sem medo de errar, que o citado artigo 6º ecoa nas vozes de toda a sociedade brasileira. Um clamor que confunde a própria ideia de retributividade mínima, bem como de uma promessa reiteradamente descumprida, uma quebra integral de confiança. E com receitas cada vez inferiores e o custo da máquina pública muito acima do fôlego financeiro, o perecimento dos órgãos prestadores de tais serviços públicos tão caros leva a uma impossibilidade imediata de reversão dessa realidade de tristes estatísticas.
Do ponto de vista financeiro e tributário, o que mais se discute são os limites do Estado na criação de novas fontes de receita, ou alargamento das já existentes, notadamente realizadas pela criação de taxas e aumento das contribuições especiais. Afinal, a conta é sempre transferida para o contribuinte.
As limitações constitucionais ao poder de tributar e a atuação do Supremo Tribunal Federal surgem, então, como a panacéia necessária para os males, em que pese sabermos que sua eficiência queda por terra, especialmente se levado em consideração o lapso temporal necessário para que as demandas sejam solucionadas, em não raras vezes após mais de uma década de tramitação. E, na outra mão, a solução da controvérsia jurídica não salva as vitimas da falta de médicos, medicamentos, segurança publica ou da fome.
Logo, temos, de um lado, potencial energia privada disponível para conter as necessidades imediatas do Estado e, de outro, débitos que dificilmente serão adimplidos no curto prazo, ousamos dizer, mesmo com um Refis em uma versão mais generosa.
Medidas como as destacadas socorrem a sociedade e garantem a comutatividade dos direitos sociais garantidos pela Constituição Federal através de instrumentos jurídicos já existentes no ordenamento jurídico e disponíveis ao legislador. E mais do que isso, promovem a vida, a dignidade e a liberdade.
Por Felipe Renault
Felipe Renault é advogado tributarista, doutorando em finanças públicas, tributação e desenvolvimento na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mestre em direito constitucional pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da pós-graduação em direito tributário e processo tributário da FGV, IBMEC e UFF.
Fonte : Valor-22/03/2018