O ano de 2017 ficou marcado pela disputa entre estados e municípios pela tributação de bens digitais e a publicação do Convênio ICMS 106/2017, já no final do segundo semestre, intensificou ainda mais esse debate. Nos termos do Convênio, seriam tributáveis pelo ICMS toda e qualquer operação com bens digitais, devendo o imposto ser recolhido no local de domicílio ou estabelecimento do adquirente do bem, por ocasião da “saída interna ou importação”, via site ou plataforma eletrônica que realize a venda ou a disponibilização, inclusive que por meio de pagamento periódico.
O estado de São Paulo, com o objetivo de viabilizar a tributação de tais bens, publicou, no final de 2017, o Decreto nº 63.099, para incorporar ao regulamento do ICMS as determinações do Convênio. Como é sabido, porém, o Convênio, e consequentemente o Decreto paulista, possuem diversas inconstitucionalidades, seja porque extrapolam conteúdo próprio de lei complementar (como responsabilidade tributária), seja porque criam nova hipótese de incidência do imposto, sem autorização constitucional para tanto, ao lado de outras questões igualmente importantes.
Na última sexta-feira, dia 16.03.2018, a 9a Vara da Fazenda Pública de São Paulo concedeu liminar em mandado de segurança coletivo exatamente para suspender os efeitos do Decreto n° 63.099/2017. A decisão alcança as empresas de tecnologia associadas da Brasscom – Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação. Na ação, patrocinada pelo escritório Rolim, Viotti e Leite Campos Advogados, defendeu-se a inconstitucionalidade defendeu-se a inconstitucionalidade tanto do Convênio n° 106/2017 quanto do Decreto de São Paulo, pelos argumentos referidos acima: tais normas criam nova hipótese de incidência do ICMS sem qualquer respaldo constitucional ou legal e, ainda, extrapolam os limites da competência dos convênios, que devem se restringir a dispor de benefícios fiscais ICMS. Ademais, aos decretos somente caberia a regulamentação de disposições legais e jamais detalhamento de um novo ICMS, como no presente caso.
Some-se a isso o fato de que a Lei Complementar nº 116/2003 claramente dispõe sobre a possibilidade de incidência do ISS sobre as operações realizadas no ambiente digital, principalmente após as alterações promovidas pela Lei Complementar n° 157/2016. Nesse sentido, destaque-se os itens 1.03, 1.04 e 1.09 da atual lista de serviços do ISS, que contempla operações na nuvem, serviços de streaming, entre outros. A manutenção do ICMS nos termos do Convênio representa evidente invasão de competência tributária dos municípios e risco real de bitributação das operações.
O Supremo Tribunal Federal (STF), de outro lado, há muito vem debatendo o tema da concorrência ou da incidência do ISS e do ICMS sobre operações que tangenciam o conceito demercadorias e serviços, mas de forma lenta e sem estabilidade em suas decisões. Veja que, tanto a Súmula n° 31, que se baseou na dicotomia do Direito de Civil entre “obrigação de fazer” e “obrigação de dar” para definir a incidência ou não do ISS, quanto a decisão no Recurso Extraordinário n° 176.626, que entendeu que só cabe a incidência do ICMS no software de prateleira transacionado em meio físico, foram desconsideradas por outros julgados posteriores, demonstrando que não há um racional na interpretação desses temas pelo STF.
Essa mesma alteração de entendimento pode ser observada nos julgamentos dos Recursos Extraordinários nºs 592.905 e 651.703 RG, em que se levou em consideração a realização de contratações complexas, sendo conferida maior elasticidade ao conceito de “serviços” para alcançar a real “utilidade” do negócio, bem como a maior importância à previsão da atividade na lista anexa à Lei Complementar n° 116/2003. Nem mesmo a decisão liminar na ADI n° 1945/MT pode ser considerada como um marco na definição da tributação das operações de software pordownload, pois além de ter sido uma decisão por maioria, ainda não foi julgado o mérito, o que ocorrerá com nova composição de Ministros.
Assim, diante da iminente possibilidade de bitributação nas operações com bens digitais, pelo ISS e pelo ICMS, bem como pela falta de decisão definitiva do STF sobre a matéria, a juíza estadual Simone Casoretti corretamente deferiu o pedido de liminar da Brasscom para suspender os efeitos do decreto paulista até o julgamento do mérito da ação.
Esse acirramento da disputa de competência tributária entre Estados e Municípios sobre as operações em ambiente virtual advém da evolução da economia digital, mas não apenas. A demora de uma produção legislativa eficaz, ao lado da indefinição do Judiciário sobre essas questões, principalmente dos tribunais superiores, contribuem para agravar o cenário. Neste contexto, as empresas, que possuem modelos de negócios cada vez mais complexos, veem-se em um quadro de grande insegurança jurídica, com a possibilidade real de redução de investimentos ou aumento de custos, que seguramente serão repassados ao consumidor. O resultado não pode ser pior: a oneração indevida de um setor fundamental para o desenvolvimento econômico e social do país.
O STF tem a oportunidade de solucionar esse impasse em diversas ações e recursos já em andamento. Como exemplo, cite-se o Recurso Extraordinário n° 688.223, com repercussão geral reconhecida, que discute a incidência do ISS sobre o licenciamento de software por encomenda, bem como as ADI n°s 5576 e 5659, ambas da Confederação Nacional de Serviços (CNS), contra a cobrança do ICMS nas operações com software por transferência eletrônica, respectivamente, pelos estados de São Paulo e Minas Gerais.
Todavia, enquanto não houver definição final do Supremo sobre a questão, certamente o Poder Judiciário estadual será cada vez mais provocado a dar respostas pontuais aos players desse mercado digital. Por isso tudo, parece-nos que essa decisão liminar da justiça estadual de São Paulo é apenas o primeiro passo na tentativa do setor de tecnologia de conviver com essa disputa dos entes federativos de forma mais racional
Por Daniela Silveira Lara e Tathiane Piscitelli
Fonte: Jota-22/03/2018