O ano de 2018 será o mais importante da história recente do país. Um ano de encerramento de um ciclo e do início de um novo período. Dias melhores virão, espera-se. Já bastam os dias difíceis de hoje em um país destroçado por administrações incompetentes e corruptas, que vivencia a mais grave das crises de legitimidade da representação popular. O sistema partidário, viciado por práticas nada republicanas para ocupação dos espaços de influência do poder político, já não responde nem corresponde aos anseios de boa parcela da população, e eleições gerais se realizarão em um ambiente que se prevê conturbado e radicalizado.
2018 também será um ano de efemérides bastante significativas de nossa história recente.
Terão sido 60 anos da primeira Copa do Mundo, conquistada na Suécia em 29 de junho de 1958, ano que não deveria ter terminado, como desejou o livro-almanaque de Joaquim Ferreira dos Santos[1], saudoso de um Brasil auspicioso, que descobria a bossa nova e ainda tinha no Rio de Janeiro sua capital onde tudo acontecia.
Terão sido 50 anos do AI-5, ato institucional que jogou o Brasil nas trevas do obscurantismo, paradoxalmente decretado em 13 de dezembro de 1968, Dia de Santa Luzia, padroeira dos olhos e da visão. 1968 foi o ano que não terminou, magnificamente contado por Zuenir Ventura[2], e que ainda tem alguns dos seus principais personagens ativos nos dias de hoje, muito embora alguns daqueles “mocinhos” se tenham bandeado para a “vilania”.
Da “marolinha” de 2008 já se passaram 10 anos. O Brasil que prosperava naufragou na maré da incompetência. Em um curto espaço de tempo de 10 anos, o Brasil desviou-se do caminho para um Olimpo de prosperidade para a estrada que leva às trevas do reino de Hades.
Ao menos as instituições democráticas sobreviveram. Isso muito graças à nova ordem constitucional construída na redemocratização. Por isso, a mais relevante das efemérides será, sem sombra de dúvida, a comemoração dos 30 anos da Constituição de 5 de outubro de 1988. Uma Constituição muito apreciada e ao mesmo tempo criticada. Prolixa, não tem palavras inúteis. Garantista, ainda carece de efetividade às normas programáticas. Mas, ao pedir passagem e se impor como norma das normas, ganhou respeito e orgulho nacional, graças ao árduo trabalho de ilustres cidadãos que têm assegurado seu zeloso cumprimento.
Terão sido, assim, também 30 anos do sistema tributário nacional introduzido pela nova constituição. E o mundo mudou muito nestes 30 anos. O sistema já não é tão novo, e a experiência prática torna cada dia mais evidente a necessidade de ajustes.
Temos acompanhado atentamente diversas manifestações de estudiosos em Direito Tributário a respeito desses “ajustes”. Algumas dessas opiniões começam a encontrar eco na mídia e, assim, a chegar mais perto do público em geral. Importante exemplo foi o artigo publicado pelas professoras da FGV Melina Rocha Lukic, Vanessa Rahal Canado e Ana Carolina Monguilod no jornal O Estado de S. Paulo, intitulado “Quatro mitos sobre a reforma tributária”[3], que defende a adoção de um imposto nacional sobre o valor acrescentado (IVA) em substituição à pluralidade de incidências criadas pela Constituição sob a forma de impostos e contribuições.
Nesse excelente e provocativo estudo se apontam quatro falácias que, no entendimento das autoras, impediriam a revisão do modelo atual da tributação do consumo: diferenciação de alíquotas por produto, o princípio da essencialidade como solução para correção de desigualdades, a diferenciação dos modelos por setores da economia e uma possível inadequação do IVA para tributar as novas tecnologias. Para as autoras, “essas falácias não podem mais dominar o debate e continuar a impedir a adoção de um novo sistema tributário mais racional, mais slim: eficaz do ponto de vista arrecadatório e econômico e que traga mais isonomia e segurança jurídica aos contribuintes”.
Sem sombra de dúvidas, o casuísmo da tributação indireta, que mais tem exceções do que regras — a tributação do PIS/Cofins é exemplo frisante —, reforça a necessidade de construção de uma alternativa menos dispersa, confusa e casuística. Uma legislação única, com regras claras e sem regimes excepcionais é uma demanda dos contribuintes que a representação política não pode fazer ouvidos moucos.
Também não temos deixado de atentar para as sempre bem estruturadas ideias de Everardo Maciel, que do alto de sua experiência identifica a problemática tributária mais nos processos e procedimentos do que no sistema tributário em si mesmo considerado.
“Sistemas tributários são intrinsicamente imperfeitos, pois construídos no embate parlamentar. A pretensão de torná-los consentâneos com modelos teóricos que se abstraem de restrições é fascinante. Abre espaço para imaginação, na busca de uma possível estética tributária. Mas desconhece os riscos e custos de mudanças disruptivas, que envolvem virtuais danos ao equilíbrio fiscal, imprevisível redistribuição de carga tributária sobre os contribuintes e, sobretudo, a perspectiva de instauração de morosos e intrincados litígios judiciais, inerentes a um país onde prevalece a próspera indústria da litigância. (……)
Alguns dados para ressaltar a dimensão dos problemas processuais e procedimentais: 1) no País, a soma das disputas tributárias (inclusive créditos inscritos em dívida ativa) perfaz R$ 3,3 trilhões, valor equivalente a aproximadamente 50% do PIB previsto para 2017, segundo o Banco Central; 2) o prazo para o desfecho, na Justiça, de controvérsias tributário-constitucionais, que começam na primeira instância, em conformidade com o controle difuso de constitucionalidade, é de 15 a 20 anos, gerando graves desequilíbrios concorrenciais; 3) estão se esgotando as possibilidades de oferecimento de avais e fianças a contribuintes que contestam lançamentos tributários pela via judicial; 4) por força de um burocratismo predatório que contrasta, paradoxalmente, com a excelência tecnológica da administração tributária, a mais recente pesquisa do Banco Mundial sobre a facilidade de fazer negócios (Doing Business) classifica o Brasil, em termos de pagamento de impostos, na lastimável 184ª posição num universo de 190 países (só quatro países pobres africanos, Bolívia e Venezuela têm desempenho inferior ao Brasil)”.
A tentativa de garantir eficácia à arrecadação não pode, porém, esquecer o alto grau de controvérsia que preside muitos dos lançamentos tributários. Com efeito, as causas individualmente mais relevantes em termos quantitativos advêm de autuações fiscais complexas, na maioria das vezes fundadas em divergências interpretativas quanto à existência de limites ao direito à elisão fiscal, e não em razão de uma simples inadimplência por parte dos particulares.
Vivemos tempos em que contribuintes que realizam operações com intuito de desembolsar menos impostos para, por exemplo, viabilizar a utilização de parcela de seus prejuízos fiscais acumulados são acusados de sonegadores e simuladores e severamente penalizados com a exigência do tributo, de uma multa agravada de 150% e com instauração de representação penal. Ora, pagar o tributo devido com um crédito contra o Estado em que o prejuízo fiscal se traduz não pode ser equiparado a um ato abusivo para não pagar o tributo. Tratar como sonegador alguém que planeja desembolsar menos recursos para pagar imposto por usar um crédito — aliás, aceito em todos os recentes programas de recuperação fiscal — é que é altamente abusivo. Um abuso do Estado contra a cidadania, um ato de excesso de poder, de excesso de exação.
Aliás, tornou-se corriqueiro o uso do termo “planejamento tributário abusivo”, seja nas autuações fiscais, seja nas decisões proferidas pelos órgãos de julgamento da administração fiscal. Também tem sido empregado nos relatórios produzidos pela Receita Federal, de que é exemplo recente — e de leitura obrigatória para os contribuintes — o Plano Anual da Fiscalização 2018[4], que divulgou o resultado dos créditos tributários constituídos em 2017 (recorde de R$ 204,99 bilhões) e o resultado esperado para 2018 (R$ 148,99 bilhões), mas não consegue divulgar qual o fundamento legal que ampara as autuações de “planejamentos tributários abusivos”.
E assim não o faz porque não existe qualquer disposição legal que defina o que venha a ser um “planejamento tributário abusivo”. O que existe é um cômodo vácuo legislativo decorrente da ausência de regulamentação, por lei ordinária, do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, que deveria estabelecer as normas procedimentais para a desconsideração de atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.
Cômodo para o Fisco, diga-se de passagem, porque diante da falta de regulamentação as autoridades fiscais de lançamento sentem-se livres para ampliar a arrecadação com base em opiniões doutrinárias, muitas inspiradas em direito alienígena, sem amparo na ordem constitucional vigente. Autuações fiscais deixaram de ser o ato típico de lançamento definido pelo artigo 142 do CTN para subsunção dos fatos às normas legais. Tornaram-se teses de academia para fazer prevalecer a vontade da administração; o voluntarismo da administração fiscal é ilimitado. No Brasil atual, passou a ser regra tributar não a operação realmente praticada à luz do direito positivo vigente, mas a operação hipotética, a operação que, no entendimento do Fisco, deveria ter sido praticada pelo particular no cumprimento de uma suposta obrigação de pagar o maior valor de imposto possível.
A constante ingerência do Fisco nos negócios dos particulares tem provocado imensa insegurança jurídica, uma instabilidade absurda no ambiente de negócios e avassaladoras contingências fiscais, de números impressionantes, que só servem para afugentar investimentos do país.
E o pior é que essa ingerência vem sendo avalizada como nunca o fora pela Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), que se tornou um verdadeiro tribunal inquisitorial, onde as teses fiscais sempre irão prevalecer como verdade absoluta, prevalência assegurada pelo desmesurado e, por isso, abusivo uso do “voto de qualidade”.
Os contribuintes perderam a confiança em um julgamento isento pelos órgãos da administração fiscal. A quebra de confiança dessa relação contribuinte-Estado tem como exemplo paradigmático a recente aceitação pela CSRF, pelo voto de qualidade, de recurso da fazenda nacional manifestamente incabível[5], incidente que causou grande comoção na comunidade jurídica. Aceitou-se oportunizar, em flagrante violação das normas processuais, a correção extemporânea de recurso fazendário apresentado de forma equivocada e que visava reestabelecer a cobrança de multa qualificada (150%) que havia sido afastada pela turma julgadora do Carf.
Tudo isso revela o desejo de se evitar o encerramento da discussão na esfera administrativa, eis que uma vez decidida favoravelmente ao particular não poderia o Fisco recorrer às instâncias judiciais para restabelecer a exigência cancelada.
Ao prosseguir nessa toada, no futuro, 2018 será lembrado como o ano da intensa judicialização de questões tributárias que poderiam ter sido decididas favoravelmente aos contribuintes na esfera administrativa federal, mas que não o foram pelo abuso do voto de qualidade pela CSRF, sempre em prol da prevalência das pretensões fiscais.
[1] 1958: o ano que não devia terminar. Joaquim Ferreira dos Santos, ed. Record, 1997.
[2] 1968: o ano que não terminou. Zuenir Ventura, ed. Nova Fronteira, 1989.
[3] http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,quatro-mitos-sobre-a-reforma-tributaria,70002171807
[4] http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/resultados/fiscalizacao/arquivos-e-imagens/2018_02_14-plano-anual-de-fiscalizacao-2018-versao-publicacao_c.pdf/view
[5] Valor Econômico de 22/1/2018; https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/carf-permite-correcao-de-recurso-da-fazenda-nacional-08022018
Por Roberto Duque Estrada
Roberto Duque Estrada é advogado no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Sócio do escritório Xavier, Duque Estrada, Emery, Denardi Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 14 de março de 2018