Há muito os contribuintes pleiteiam a aplicação da prescrição intercorrente ao processo administrativo fiscal, tendo em vista que a Fazenda Pública não possui um prazo ad eternum para exercer o controle de legalidade sobre seus atos — in casu, decidir impugnações e recursos administrativos opostos a lançamentos de créditos tributários, pois a demora excessiva nas decisões dos órgãos julgadores, sem qualquer justificativa plausível, lhes causa sérios transtornos, tais como o acumulo de juros que muitas vezes acabam por ultrapassar de forma significativa o valor do principal, sendo indevida a permanência por tempo demasiado na incerteza da cobrança do crédito tributário.
Assim, para adentrarmos na análise da possibilidade de reconhecimento da prescrição intercorrente em sede do PAF, se faz necessária a prévia definição do instituto. Portanto, por prescrição intercorrente deve-se entender como “o desaparecimento da proteção ativa ao possível direito material postulado” decorrente da “inércia continuada e ininterrupta no curso do processo por seguimento temporal superior àquele em que se verifica a prescrição em dada hipótese”[1].
Ou seja, em outros termos, nada mais é do que a efetivação dos princípios constitucionais da eficiência[2], segurança jurídica e duração razoável do processo[3], cujo último foi introduzido no texto constitucional quando da promulgação da EC 45/2004 para elevar tal direito ao nível de garantia fundamental do contribuinte.
É certo que não se ignora a existência de decisões judiciais do Superior Tribunal de Justiça contrárias à tese de sua aplicabilidade na via administrativa[4], sob o fundamento de ausência de constituição definitiva do crédito tributário (artigo 174 do CTN[5]) e de previsão legal.
Entretanto, a questão, além de carecer de um posicionamento definitivo, posto que ainda não foi objeto de apreciação em sede de recurso especial repetitivo ou extraordinário, com repercussão geral reconhecida, possui inúmeras razões para o reconhecimento da sua aplicação ao PAF, inclusive de ordem econômico-constitucional, pois, em última análise, promoverá, invariavelmente, o aumento da eficiência da arrecadação tributária através da celeridade dos atos da administração pública.
Senão vejamos.
Afirma o STJ que, não estando o crédito tributário objeto de impugnação definitivamente constituído, não há de se falar em decurso do prazo prescricional por impossibilidade de exercício da pretensão executiva.
Ocorre que, sendo o lançamento o ato pelo qual o agente competente averígua a ocorrência do fato descrito na norma, apurando o crédito tributário, formalizando-o e informando o seu destinatário, ou seja, verdadeiro processo de positivação do direito[6], as impugnações e recursos administrativos não suspendem a sua constituição, mas tão-somente a exigibilidade, pois aquele é pressuposto deste.
É o que leciona a doutrina nacional:
“Por exigibilidade havemos de compreender o direito que o credor tem de postular, efetivamente, o objeto da obrigação, e isso tão só ocorre, como é óbvio, depois de tomadas as providências necessárias à constituição da dívida, com a lavratura do ato de lançamento tributário” (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011).
Tanto é assim que o CTN prevê a constituição do crédito tributário como pressuposto para suspensão da exigibilidade, ainda que aquela se dê unicamente para prevenir a decadência, verbis:
“Art. 141. O crédito tributário regularmente constituído somente se modifica ou extingue, ou tem sua exigibilidade suspensa ou excluída, nos casos previstos nesta Lei, fora dos quais não podem ser dispensadas, sob pena de responsabilidade funcional na forma da lei, a sua efetivação ou as respectivas garantias”.
“Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário:
[…]
III – as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo”.
Como visto, verificada a inércia dos órgãos julgadores administrativos, a prescrição intercorrente deve ser reconhecida, até porque o Direito não socorre aos que dormem (dormientibus non succurrit jus).
E nem se alegue que a ausência de previsão legal não autoriza o seu reconhecimento na esfera administrativa.
É que “o fato de não haver uma norma dispondo especificamente acerca do prazo prescricional, em determinada hipótese, não confere a qualquer pretensão a nota de imprescritibilidade”, cabendo ao intérprete “buscar no sistema normativo, em regra através da interpretação extensiva ou da analogia, o prazo aplicável”[7] (artigo 108 do CTN), ou, no mínimo, proceder à aplicação dos princípios constitucionais (por exemplo, duração razoável do processo e segurança jurídica) — verdadeiros direitos e garantias do contribuinte, cuja eficácia é plena[8].
Por fim, e não menos importante, ainda que se entenda pela necessidade de existência de uma norma jurídica disciplinadora, e diante dos diversos benefícios que sua previsão trará aos cofres públicos (por exemplo, tendência a uma maior celeridade na cobrança do crédito tributário), este é um bom momento para que as Fazendas Públicas introduzam tal previsão em seus PAFs, pois, à semelhança do que ocorre com o artigo 40, parágrafo 4º, da Lei 6.830/80, não estar-se-ia a instituir ou alterar a regra de prescrição, mas tão-somente a disciplinar o seu modo de reconhecimento[9], inexistindo invasão à reserva de lei complementar (artigo 146 da CF).
[1] ALVIM, Arruda. Da prescrição intercorrente. In: CIANCI, Mirna (Coordenadora). Prescrição no Novo Código Civil uma análise interdisciplinar. São Paulo: Saraiva, 2005. págs. 26-45.
[2] “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência […].
[3] “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”
[4] Por todas, confira-se: STJ, AREsp 1.638.268/MG, 2ª Turma, rel. min. Mauro Campbell Marques, DJe 1º/3/2017.
[5] “Art. 174. A ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em cinco anos, contados da data da sua constituição definitiva.”
[6] E não poderia ser diferente, pois o processo de positivação do direito é definitivo, sendo descabido o estabelecimento da dualidade “provisória” e “definitiva” às normas individuais e concretas, sob pena de tornar todas as normas jurídicas, tais como sentenças e acórdãos, em meramente provisórias, pois sujeitas à alteração.
[7] BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Renovar. 2ª ed., 2002. Pág. 501.
[8] Constituição Federal: “Art. 5º. […] § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
[9] “TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. INÉRCIA DA EXEQUENTE POR MAIS DE CINCO ANOS. PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE DIVERSA DA PREVISTA NO ART. 40, DA LEF. OCORRÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. ‘É cabível a decretação da prescrição intercorrente por inércia da Fazenda Pública, mesmo em hipótese diversa daquela regulada na Lei de Execuções Fiscais. O art. 40 da LEF tão somente disciplina o procedimento para decretar-se a prescrição contra a Fazenda Pública quando não encontrado o devedor ou bens para serem penhorados’ (AgRg no REsp 1.284.357/SC, rel. min. Castro Meira, 2ª Turma, DJe 4/9/2012). No caso, o acórdão recorrido explicitou a inércia da exequente que perdurou por mais de nove anos. 2. Agravo regimental não provido” (AgRg no AREsp 534.414/SC, 2ª Turma, rel. min. Mauro Campbell Marques, DJe 1º/9/2014).
Por Felipe Contreras Novaes e Caio Cesar Braga Ruotolo
Felipe Contreras Novaes é advogado, coordenador do Contencioso Tributário do RGS Advogados, especialista em Direito Tributário pela PUC-SP e membro da Comissão de Direito Tributário da OAB-SP.
Caio Cesar Braga Ruotolo é coordenador do Departamento Jurídico da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e membro da Comissão de Direito Tributário da OAB-SP.
Revista Consultor Jurídico, 16 de março de 2018