A insegurança jurídica persiste e, neste momento, o produtor rural contribuinte do Funrural vê-se às voltas com a necessária reflexão acerca dos equívocos do passado (?), especialmente terá a difícil tarefa de escolher entre continuar discutindo em juízo a exigência, com remotas possibilidades de êxito, ou aderir ao Programa de Regularização Tributária Rural (PRR) – Refis Rural, cujo prazo vence em 30/4/2018, nos termos da MP 803/17.
Muito mais do que discutir o mérito do julgamento do Supremo Tribunal Federal na matéria (afinal, vencido pelo placar de 6×5 pela Fazenda Nacional — RE 718.874/RS), o que revelaria um inconformismo fundamentado, porém inútil, a questão do Funrural nos coloca frente a frente com a crônica incapacidade de nossas instituições de pôr a cobro a prática centenária da administração pública tributária brasileira de testar os limites da jurisdição, aproximando-a de um modelo quase ancilar de jurisdição administrativa: o executivo/legislativo lança medidas de discutível constitucionalidade fiando-se nas preocupações fazendárias do judiciário.
Aliás, diga-se, as preocupações exclusivas com saúde do Tesouro, em detrimento do cidadão, não é exclusividade de nosso judiciário. Todos recordam do famoso caso Nix v. Hedden, onde a Suprema Corte Americana, em 1893, decidiu que tomates são “vegetais”, para fins tributários, mesmo que sejam “frutas” do ponto de vista botânico. Tivesse a Suprema Corte americana considerado-os como frutas, como efetivamente o são, a importação de tomates seria isenta, o quê desatendia ao interesse momentâneo da arrecadação.
A diferença entre lá, e cá, é que nós podemos (ríamos) aproveitar a experiência dos equívocos incorridos, especialmente em matéria de direitos fundamentais. Não custa recordar: as limitações constitucionais ao Poder de Tributar são garantias caras ao Estado Democrático de Direito. O Supremo Tribunal Federal não deve (ria) avançar além das questões jurídicas postas à sua análise ou, quando muito, deve (ria) buscar solução de compromisso sempre tendo em mãos de um lado a Balança da Justiça e do outro, não a Espada, mas a Constituição, independentemente de qualquer outro juízo de consideração, por mais difícil que seja a realidade. O respeito à Carta molda a realidade social.
Negar vigência e validade ao texto constitucional, conferindo interpretação destoada do sentido técnico dos termos empregados pelo constituinte (quando eles existem) e pelo legislador ordinário, significa reduzir o direito a uma ciência pré-jurídica, descompromissada com uma realidade muito maior e complexa que a decorrente das contingências temporárias do exercício do poder.
Segundo Konrad Hesse1:
Assim, o Direito Constitucional não estaria a serviço de uma ordem estatal justa, cumprindo-lhe tão somente a miserável função — indigna de qualquer ciência — de justificar as relações de poder dominantes. Se a Ciência da Constituição adota essa tese e passa a admitir a Constituição real como decisiva, tem-se a sua descaracterização como ciência normativa, operando-se a sua conversão numa simples ciência do ser. Não haveria mais como diferençá-la da Sociologia ou da Ciência Política.
Voltamos a Ferdinand Lassalle2 e à explicação fácil dos fatores reais de poder, e da conformação do Texto à Realpolitik, em desmerecimento do necessário avanço institucional do país, à mercê que fica dos compromissos dos grupos organizados no tecido social e no aparelho do estado.
Mais grave, entretanto, que a reversão da jurisprudência anterior (caso Frigorífico Mata Boi, onde se assentara a inconstitucionalidade da exigência), com fundamentos discutíveis do ponto de vista jurídico (recorde-se o placa de 6×5 em favor da Fazenda Nacional), é a não finalização do julgamento e a ausência de análise de questão de fundamental importância que é a relativa à modulação dos efeitos temporais da decisão.
Segundo o artigo 27, da Lei 9.868/99, ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
Em outras palavras, o Supremo Tribunal Federal pode (deve!) estabelecer o momento no tempo em que determinada decisão sua, em controle difuso ou concentrado, terá eficácia, em atendimento a reclamos de segurança jurídica ou “excepcional” interesse social. Heleno Taveira Torres3, ao tratar do tema, mais claro e didático não poderia ser:
As condições entabuladas no artigo 27 da Lei 9.868/1999, porém, não podem ser concebidas como uma “faculdade” ao Plenário. Quer dizer, quando comprovado que a situação fática será afetada por insegurança jurídica ou excepcional interesse social, deverá, o Plenário do Supremo unicamente deliberar sobre restringir os efeitos e atribuir eficácia ex nunc (efeitos prospectivos) ou empregar modulação temporal para as declarações de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos.
Portanto, não é, nem deveria ser, uma faculdade do Supremo Tribunal Federal analisar a modulação dos efeitos da decisão proferida no RE 718.874/RS onde se definiu a tese da constitucionalidade da cobrança do Funrural, mas, sim, um dever, uma obrigação jurídica face à evidente insegurança que grassa nos meios agrários a respeito do tema, insegurança esta agravada pela faca posta no pescoço do contribuinte que deve optar, como dito, até o dia 30/4/2018, entre aguardar a decisão sobre a modulação (sem garantia alguma de que esta virá e/ou de que forma virá) ou confessar e parcelar o débito, com conversão em renda dos valores depositados, inclusive, em favor do fisco federal.
É a cruz e a caldeirinha. É formalização da insegurança jurídica em detrimento do texto magno e do sistema de garantias do contribuinte, especialmente quando se constata que, apesar da redação expressa do artigo 5º, inciso LXXVIII, não há qualquer mecanismo, no Brasil, de combate à morosidade judicial, em especial do Supremo Tribunal Federal que, na matéria, diga-se, deveria ser exemplo.
Deste modo, o contribuinte ainda goza de mais algumas semanas para refletir a respeito de quem o teria guiado, iluminando seus passos, nesta sombria noite. Certamente não foi uma pessoa, ou uma instituição, que, de forma consciente e maldosa produziu este estado de coisas. A questão é mais profunda: insegurança jurídica é tema que transcende o direito e alcança a sociologia e a política. A questão do Funrual nos diz mais sobre nós e nossa ordem jurídica do quê gostaríamos, de certa forma explica do que se compõe nosso tecido social, qual a nossa “essência”.
Outrossim, parcelado o débito, como penso que deva ser procedido pelo produtor rural, ou pelo sub-rogado, o contribuinte terá longos anos de reflexão e talvez possa concluir, em algum momento, qual foi o seu “pecado” e as razões pelas quais deva purgar sua “culpa”: confiar num ordenamento jurídico e em instituições que não primam pelo respeito à cidadania tributária.
Funrural qui judicat ad infernum!
1 Hesse, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre. SAFE, 1996, p. 19.
2 LASSALLE, Ferdinand. Que é uma Constituição. Tradução de Walter Stonner. Edições e Publicações do Brasil, 1933, p. 13.
3 TORRES, Heleno Taveira. Modulação de efeitos da decisão e o ativismo judicial. Disponível em https://www.conjur.com.br/2012-jul-18/consultor-tributario-modulacao-efeitos-decisoes-fundamental acesso em 6 de março de 2018.
Referências bibliográficas
Hesse, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre. SAFE, 1996, p. 19.
LASSALLE, Ferdinand. Que é uma Constituição. Tradução de Walter Stonner. Edições e Publicações do Brasil, 1933. As condições entabuladas no artigo 27 da Lei 9.868/1999, porém, não podem ser concebidas como uma “faculdade” ao Plenário. Quer dizer, quando comprovado que a situação fática será afetada por insegurança jurídica ou excepcional interesse social, deverá, o Plenário do Supremo unicamente deliberar sobre restringir os efeitos e atribuir eficácia ex nunc (efeitos prospectivos) ou empregar modulação temporal para as declarações de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos. p. 13.
TORRES, Heleno Taveira. Modulação de efeitos da decisão e o ativismo judicial. Disponível em https://www.conjur.com.br/2012-jul-18/consultor-tributario-modulacao-efeitos-decisoes-fundamental, acesso em 6 de março de 2018.
Por Rogério Oliveira Anderson
Rogério Oliveira Anderson é mestre em Direito Agrário (UFG), especialista em Gestão do Agronegócio (UFPR), professor da Graduação e Pós-Graduação do IESB, secretário geral da Comissão de Direito Agrário e do Agronegócio da OAB-DF, procurador do Distrito Federal e Advogado.
Revista Consultor Jurídico, 17 de março de 2018