A lógica da IN RFB nº 1.771
No ano passado foi publicada no Brasil a nova norma para o reconhecimento contábil de receitas, o Pronunciamento CPC nº 47 (CPC 47), decorrente do IFRS 151. Como essa norma é posterior à Lei nº 12.973, de 2014, caberia à Receita Federal (RFB) regulamentar seus efeitos para fins de apuração de tributos federais.
Em 13 de setembro, a RFB publicou minuta de norma colocada em audiência pública e sobre a qual fizemos alguns comentários em outubro. Em 20 dezembro passado finalmente foi publicada a Instrução Normativa n. 1.771 (IN 1.771), que tentou resolver alguns dos pontos que havia levantado nesta Coluna.
Período de Vigência do CPC 30 e os Ajustes da Lei nº 12.973
O “limbo tributário” entre o CPC 30 e o CPC 47 foi parcial e aparentemente resolvido, pois dependerá da interpretação de todo o nosso complexo sistema tributário, incluindo a Constituição Federal (CTN) e o Código Tributário Nacional (CTN).
A questão que está pode detrás deste problema, como já escrevi diversas vezes nesta coluna, é entender se o CPC 47 é ou não uma nova norma comparativamente ao Pronunciamento CPC nº 30 (norma anterior ao CPC 47 que regulava o reconhecimento de receitas e que estava vigente desde 2009). Informalmente, sabemos que a Receita Federal entende que o CPC 47 é uma nova norma, muito embora seu conteúdo já estivesse dito de forma ampla e menos explícita que no CPC 30. Mas, então, o que fazer com as empresas que aplicaram o CPC 30, tal como explicitado agora no CPC 47 e que seguiram o quanto estipulado pela Lei nº 12.973?
Apenas para relembrar, a Lei nº 12.973 de 2014 dispôs expressamente sobre os ajustes que deveriam ser feitos para fins tributários em relação aos Pronunciamentos que estavam vigentes à época (como era o caso do CPC 30). Entretanto, quase nenhum dos relevantes aspectos do CPC 30 foi tratado na Lei nº 12.973, como o não-reconhecimento de receitas em razão da incerteza quanto ao recebimento, as segregações das obrigações de desempenho e o diferimento no reconhecimento das receitas etc.
A solução dada aparentemente pela IN 1.771 foi a seguinte: ao relacionar os Novos Métodos e Critérios Contábeis para fins de ajuste, a RFB segregou-os em dois itens. No primeiro foram indicados os procedimentos contábeis que contemplavam modificação ou adoção de novos métodos ou critérios contábeis, tais como (i) o tratamento dos serviços de custódia e das garantias como passivos, (ii) segregação das obrigações de desempenho etc.
No item 2 foram relacionados os procedimentos contábeis que “caso adotados pela pessoa jurídica, contemplam métodos ou critérios contábeis que divergem da legislação tributária”, dentre os quais estão citados (i) a incerteza quanto ao recebimento para o não-reconhecimento da receita e (ii) o tratamento como passivos das devoluções e das aquisições opcionais (ou com desconto) de bens e serviços. O segregar esses dois últimos itens dos demais, a RFB se protegeu de interpretações que alinhassem o tratamento dado pelo CPC 30 ao tratamento tributário.
Ao indicar que o não reconhecimento de receitas em razão da incerteza de seu recebimento contraria a legislação tributária, a RFB atribuiu uma espécie de neutralidade retroativa ao CPC 30, não tratado pela Lei nº 12.973.
É claro que é muito complexa a resposta quanto à divergência em relação à legislação tributária, não só porque ela é muito vasta, mas especialmente porque é altamente litigiosa sua interpretação. Vamos nos lembrar que até hoje não existe um conceito seguro de receita tributável, como temos para o Imposto de Renda (muito embora o tema dos “lucros no exterior” tenha sacudido um bocado o art. 43 do CTN).
Critério Contábil Anterior e o Conceito de Receita Bruta
A noção ampla de “legislação tributária” também foi utilizada como critério para indicar como a receita para fins tributários deveria ser reconhecida. De acordo com os itens 5 e 6 da IN 1.771, a receita mensurada e reconhecida de acordo com a legislação tributária é que o se denominou por “receita bruta”.
Na prática, portanto, a ideia é que o contribuinte compare a receita reconhecida de acordo com o CPC 47 e a receita bruta, que é aquela definida no art. 12 do Decreto-Lei nº 1.598 e reconhecida de acordo com os critérios da legislação tributária, e faça os ajustes necessários.
A definição de receita bruta do art. 12 do Decreto-Lei nº 1.598 está longe de ser suficiente para ser utilizada como critério de mensuração e reconhecimento. E, o problema é que, diferentemente do imposto de renda, não temos um conceito de receita no CTN e muito menos temos um conceito de receita sedimentado jurisprudencialmente.
No conceito de receita para fins tributários (receita bruta, portanto) permaneceriam sendo incluídos, portanto, os tributos sobre vendas e o montante seria reconhecido quando do momento da emissão das notas fiscais.
Entretanto, como ficará o momento da emissão das notas fiscais após o CPC 47? Será que a legislação do ISS e a legislação do ICMS também não acompanharão as concepções econômicas dos novos padrões contábeis? Se sim, como ficaria o momento de reconhecimento da receita bruta na segregação das obrigações de desempenho?
Enfim, essa discussão está só no começo e seria muito importante que, nesse período de aprendizagem conjunta, fossem adotadas medidas educativas e menos repressivas por parte da RFB, incentivando o Compliance e acompanhando as modernas técnicas de arrecadação tributária, baseadas no “paradigma do serviço” em detrimento do “paradigma do crime”2.
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1 Para mais informações, ver a série de 6 artigos publicada no JOTA, que tinha como objetivo analisar os impactos tributários da nova norma contábil para o reconhecimento de receitas.
2 Esses paradigmas são trabalhados por James Alm. A título de exemplo, ver ALM, James. Um Sistema Tributário transparente desencorajaria o “planejamento tributário agressivo”? In: Transparência Fiscal e Desenvolvimento. Homenagem ao Professor Isaias Coelho. São Paulo: Ed. Fiscosoft, 2013, p. 276.
Fonte: Jota-05/02/2018
Vanessa Rahal Canado
Vanessa Rahal Canado – professora da FGV DIREITO SP, colaboradora do CCiF e advogada em São Paulo