Nesse início de 2018, os contribuintes já se viram obrigados a bater às portas do guardião da Constituição para buscar o reconhecimento da inconstitucionalidade de uma das mais graves medidas legislativas tomadas nos últimos tempos, que veio garantir à Fazenda Pública federal a prerrogativa de avançar de forma unilateral e forçada sobre o patrimônio dos particulares.
Referimo-nos à Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.881, movida pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e distribuída ao ministro Marco Aurélio1, que impugna a sub-reptícia inserção pelo artigo 25 da Lei 3.606, de 9 de janeiro de 2018, dos artigos 20-B, parágrafo 3º, inciso II e artigo 20-E (parte), na Lei 10.522, de 19 de julho de 2002, que tratam sobre a possibilidade de a Fazenda Pública averbar a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto e penhora, tornando-os indisponíveis2.
A providência legislativa em questão desvirtuou o funcionamento consolidado do sistema de cobrança de créditos tributários federais e atingiu o núcleo de vários direitos constitucionais de proteção aos devedores e contribuintes. Uma providência dessa magnitude foi aprovada às pressas, inserida como “jabuticaba” na lei do Programa de Regularização Tributária Rural, sem a discussão aprofundada no Congresso Nacional que sua natureza requer.
Lamentavelmente, o presidente da República se limitou a vetar o artigo 20-D3 na Lei 10.522/02, que criava verdadeiro procedimento inquisitorial a ser instaurado no âmbito da Fazenda Pública para apurar a responsabilidade de pessoas relacionadas a débito inscrito em dívida ativa da União quando houvesse indícios de prática de ato ilícito previsto na legislação tributária, civil e empresarial. O veto justificou-se pelo risco à segurança jurídica dos contribuintes, já que não determinava os limites que poderiam alcançar o procedimento.
No entanto, manteve-se o poder indiscriminado conferido à Fazenda Pública para, unilateralmente e sem intervenção do Judiciário, bloquear os bens dos devedores e contribuintes inscritos em dívida ativa federal.
São inúmeras as disposições constitucionais violadas4 pelos artigos 20-B, parágrafo 3º, inciso II e artigo 20-E (parte), da Lei 10.522, de 19 de julho de 2002. Ressaltamos três delas, a saber: (i) reserva de lei complementar para o estabelecimento de normas sobre crédito tributário (artigo 146, III, “b”); (ii) devido processo legal substantivo e reserva de jurisdição (artigo 5º, LIV e XXXV); e (iii) contraditório e ampla defesa (artigo 5º, LV).
A reserva de lei complementar é violada porque o artigo 146, III, “b” é expresso em submeter ao quórum qualificado o estabelecimento de normas sobre crédito tributário e as disposições constantes dos artigos 20-B, parágrafo 3º, II e artigo 20-E, veiculadas por lei ordinária, indiscutivelmente ampliaram as garantias do crédito tributário federal para além daquelas previstas nos artigos 185 e 185-A do Código Tributário Nacional (CTN).
O princípio do devido processo legal substantivo encontra-se previsto no artigo 5º, LIV, da CF/88, que dispõe que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Esse princípio é flagrantemente violado, pois as alterações promovidas pelo artigo 25 da Lei 13.606/2018 não vencem o teste da razoabilidade exigido pelo princípio em causa.
Com efeito, as providências que agora poderão ser adotadas unilateralmente pelo Estado na cobrança da dívida ativa federal causarão graves danos aos negócios dos contribuintes que poderão ter uma série de bens imprescindíveis às suas atividades bloqueados (por exemplo, capital de giro, veículos, maquinários, imóveis, ações, investimentos etc.) como meio de coação para o pagamento de tributo, o que definitivamente não é razoável com as finalidades da alteração legislativa pretendida.
Isso sem levar em conta que a Fazenda Pública já dispõe de instrumentos legais que permitem a imposição de restrições e de bloqueio de bens. Referimo-nos, entre outros5, ao procedimento cautelar fiscal (Lei 8.937/92), que depende de decisão judicial e exige a prova da suspeita de fraude à dívida ativa, expondo o caráter excessivo do novo instrumento, em que o bloqueio de bens prescinde de qualquer comprovação.
A alteração legislativa que permite o bloqueio unilateral de bens pelo próprio ente credor e executor da dívida nada mais é que uma disfarçada sanção política veementemente repudiada pela jurisprudência do STF.
Com efeito, o STF tem reiteradamente decretado a inconstitucionalidade de toda e qualquer restrição desproporcional ao desenvolvimento de atividade econômica ou de qualquer profissão lícita para garantir ou induzir ao pagamento de tributo6, como evidenciam as súmulas 70, 323 e 5477.
É paradigmático desse entendimento o voto proferido pelo então ministro Joaquim Barbosa, relator do RE 552.769/RJ, em especial no trecho a seguir transcrito em que cita passagem do voto do ministro Celso de Mello no RE 413.782/SC8:
“A sanção política também viola o devido processo legal substantivo na medida em que implica o abandono dos mecanismos previstos no sistema jurídico para apuração e cobrança de créditos tributários (e.g., ação de execução fiscal), em favor de instrumentos oblíquos de coação e indução. Esse aspecto foi registrado pelo eminente Ministro Celso de Mello, em voto-vogal proferido nos autos do RE 413.782:
‘A circunstância de não se revelarem absolutos os direitos e garantias individuais proclamados no texto constitucional não significa que a Administração Tributária possa frustrar o exercício da atividade empresarial ou profissional do contribuinte, impondo-lhe exigências gravosas, que, não obstante as prerrogativas extraordinárias que (já) garantem o crédito tributário, visem, em última análise, a constranger o devedor a satisfazer débitos fiscais que sobre ele incidam.
O fato irrecusável, nesta matéria, como já evidenciado pela própria jurisprudência desta Suprema Corte, é que o Estado não pode valer-se de meios indiretos de coerção, convertendo- os em instrumentos de acertamento da relação tributária, para, em função deles – e mediante interdição ou grave restrição ao exercício da atividade empresarial, econômica ou profissional – constranger o contribuinte a adimplir obrigações fiscais eventualmente em atraso‘”.
(RE 550.769, relator(a): min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, julgado em 22/5/2013, acórdão eletrônico DJe-066, divulgado em 2/4/2014, publicado em 3/4/2014 — sem grifos no original.)
Acresce que, no sistema constitucional brasileiro, o poder de tomar medidas acauteladoras — como aquela que possibilita tornar indisponíveis os bens dos devedores e contribuintes — é prerrogativa exclusiva do Poder Judiciário. Admitir a ação unilateral do Executivo vai de encontro ao princípio da reserva de jurisdição, solenemente consagrado pela Constituição quando determina que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (artigo 5º, XXXV, da CF/88).
Tal princípio somente se relativiza em matéria de bloqueio de bens em casos excepcionados pela própria Constituição, a exemplo do que ocorre com o Tribunal de Contas da União, que, de forma implícita, pode adotar essa medida para exercer suas funções constitucionais explícitas, conforme decidiu o STF no julgamento do MS 33.092/DF9.
A instituição da possibilidade de bloqueio unilateral dos bens pela Fazenda Pública viola ainda as garantias constitucionais ao contraditório e à ampla defesa, pois permite ao poder público, sem a necessidade de intervenção de órgão imparcial, inferir a intenção do devedor e contribuinte em fraudar a dívida ativa e, ainda, se valer da escolha definitiva do bem que será atingido pela medida constritiva.
Ora, a inferência sem provas da má-fé do administrado e contribuinte ou a indicação unilateral do seu bem que se tornará indisponível, pelo próprio ente interessado na execução da dívida e sem que haja uma decisão imparcial e prévia para tanto, representa, na verdade, uma imposição coercitiva disfarçada do Fisco para se evadir da discussão de direito que se daria em sede de execução fiscal, que muitas vezes envolve a própria existência da dívida.
Na sistemática constitucional da separação dos Poderes, cabe ao Judiciário evitar medidas arbitrárias tomadas pelo Executivo na cobrança de seus créditos, como magistralmente anota o decano de nossa corte suprema:
“Daí a necessidade de rememorar, sempre, a função tutelar do Poder Judiciário, investido de competência institucional para neutralizar eventuais abusos das entidades governamentais, que, muitas vezes deslembradas da existência, em nosso sistema jurídico, de um “estatuto constitucional do contribuinte”, consubstanciador de direitos e garantias oponíveis ao poder impositivo do Estado (Pet 1.466/PB, Rel. Min. CELSO DE MELLO, in “Informativo STF” nº 125), culminam por asfixiar, arbitrariamente, o sujeito passivo da obrigação tributária, inviabilizando-lhe, injustamente, o exercício de atividades legítimas, o que só faz conferir permanente atualidade às palavras do Justice Oliver Wendell Holmes, Jr. (“The power to tax is not the power to destroy while this Court sits”), em “dictum” segundo o qual, em livre tradução, “o poder de tributar não significa nem envolve o poder de destruir, pelo menos enquanto existir esta Corte Suprema”, proferidas, ainda que como “dissenting opinion”, no julgamento, em 1928, do caso “Panhandle Oil Co. v. State of Mississippi Ex Rel. Knox” (277 U.S. 218).
Não se pode perder de perspectiva, portanto, em face do conteúdo evidentemente arbitrário da exigência estatal ora questionada na presente sede recursal, o fato de que, especialmente quando se tratar de matéria tributária, impõe-se ao Estado, no processo de elaboração (e de aplicação) das leis, a observância do necessário coeficiente de razoabilidade, pois, como se sabe, todas as normas emanadas do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do “substantive due process of law” (CF, art. 5º, LIV), eis que, no tema em questão, o postulado da proporcionalidade qualifica-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais, consoante tem proclamado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.”
(Voto proferido pelo ministro Celso de Mello no RE 565.048, relator(a): min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 29/5/2014, acórdão eletrônico com repercussão geral – mérito DJe-197, divulgado em 8/10/2014, publicado em 9/10/2014 — sem grifos no original.)
Não se poderia dizer melhor!
Por fim, não podemos deixar de anotar que a inconstitucionalidade de medidas que configurem a chamada execução administrativa já foi categoricamente reconhecida pela jurisprudência do STF, como se lê da seguinte passagem do voto da então ministra Ellen Gracie, na ocasião do julgamento do RE 591.033/SP:
“Ademais, todo o movimento do Judiciário brasileiro é no sentido de ampliar o acesso à jurisdição em cumprimento ao mandamento constitucional estampado no art. 5º, XXXV: ‘a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’.
(…)
No sistema brasileiro, em que não é dado ao Executivo proceder à chamada ‘execução administrativa’, a fase de cobrança extrajudicial restringe-se à notificação do contribuinte para que pague voluntariamente seu débito. Não há instrumentos de expropriação à disposição do Fisco.
Os atos expropriatórios estão sob a chamada ‘reserva de jurisdição’. O Fisco precisa, como qualquer pessoa, buscar perante o Judiciário a satisfação dos seus créditos, ajuizando execução fiscal.
Aliás, é firme a jurisprudência desta Corte no sentido de que cabe ao Fisco cobrar seus créditos mediante a via da execução fiscal, vedando-lhe que a substitua por mecanismos indiretos de coerção — ‘normas enviesadas a constranger o contribuinte, por vias oblíquas, ao recolhimento do crédito tributário’ (ADI 173) — que se costumam chamar de ‘sanções políticas’. Tal orientação está consolidada nos Enunciados 70, 323 e 547 da Súmula desta Corte.
(RE 591.033, relator(a): min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, julgado em 17/11/2010, repercussão geral – mérito DJe-038, divulgado em 24/2/2011, publicado em 25/2/2011, ementa VOL-02471-01 PP-00175.)
Agora resta aguardar a regular tramitação do processo e acompanhar seus próximos capítulos, com a esperança de que o STF encontrará a solução na melhor interpretação dos preceitos de nossa balzaquiana Constituição de 1988.
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Na China, o número 8 é o mais querido, representa sorte, prosperidade e sucesso. Seja pela perfeita simetria, seja por simbolizar o infinito e, especialmente, porque o som da palavra oito é semelhante ao som da palavra prosperidade ou fortuna. Que a crença chinesa nos inspire e ilumine e faça de 2018 um ano de sorte nas mudanças de que tanto precisamos e merecemos.
1 https://www.conjur.com.br/2018-jan-19/acao-questiona-lei-permite-bloqueio-bens-decisao-judicial
2 Sobre a inconstitucionalidade do artigo cfr as opiniões publicadas na ConJur: https://www.conjur.com.br/2018-jan-16/ricardo-varejao-averbacao-pre-executoria-inconstitucional; https://www.conjur.com.br/2018-jan-11/cleucio-nunes-bloqueio-bens-fazenda-revoga-artigo-ctn
3 Art. 20-D. Sem prejuízo da utilização das medidas judicias para recuperação e acautelamento dos créditos inscritos, se houver indícios da prática de ato ilícito previsto na legislação tributária, civil e empresarial como causa de responsabilidade de terceiros por parte do contribuinte, sócios, administradores, pessoas relacionadas e demais responsáveis, a Procuradoria-Geral da Fazenda Pública poderá, a critério exclusivo da autoridade fazendária:
I – notificar as pessoas de que trata o caput deste artigo ou terceiros para prestar depoimentos ou esclarecimentos;
II – requisitar informações, exames periciais e documentos de autoridades federais, estaduais e municipais, bem como dos órgãos e entidades da Administração Pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
III – instaurar procedimento administrativo para apuração de responsabilidade por débito inscrito em dívida ativa da União, ajuizado ou não, observadas, no que couber, as disposições da Lei no 9.784, de 29 de janeiro de 1999.
4 Também consideramos violados: (i) direito de propriedade (artigo 5º, capute inciso XXII, e artigo 170, II); (ii) livre iniciativa (artigo 170, caput e parágrafo único); e (iii) isonomia (artigo 5º, caput e 150,II).
5 Outras medidas disponíveis são o bloqueio preventivo de bens (artigo 185-A do CTN) e o arrolamento de bens e direitos (Instrução Normativa RFB 1.565/2015).
6 Cfr. Voto do min. Joaquim Barbosa no julgamento do RE 550.769, rel. min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, julgado em 22/5/2013, acórdão eletrônico DJe-066, divulgado em 2/4/2014, publicado em 3/4/2014.
7 Súmula 70: É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.
Súmula 323: É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.
Súmula 547: Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.
8 DÉBITO FISCAL – IMPRESSÃO DE NOTAS FISCAIS – PROIBIÇÃO – INSUBSISTÊNCIA. Surge conflitante com a Carta da República legislação estadual que proíbe a impressão de notas fiscais em bloco, subordinando o contribuinte, quando este se encontra em débito para com o fisco, ao requerimento de expedição, negócio a negócio, de nota fiscal avulsa. (RE 413782, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 17/03/2005, DJ 03-06-2005 PP-00004 EMENT VOL-02194-03 PP-00618 LEXSTF v. 27, n. 320, 2005, p. 286-308 RT v. 94, n. 838, 2005, p. 165-176 RDDT n. 120, 2005, p. 222).
9 Mandado de Segurança. 2. Tribunal de Contas da União. Tomada de contas especial. 3. Dano ao patrimônio da Petrobras. Medida cautelar de indisponibilidade de bens dos responsáveis. 4. Poder geral de cautela reconhecido ao TCU como decorrência de suas atribuições constitucionais. 5. Observância dos requisitos legais para decretação da indisponibilidade de bens. 6. Medida que se impõe pela excepcional gravidade dos fatos apurados. Segurança denegada.
MS 33092, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 24/03/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-160 DIVULG 14-08-2015 PUBLIC 17-08-2015.
Por Roberto Duque Estrada
Roberto Duque Estrada é advogado no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Sócio do escritório Xavier, Duque Estrada, Emery, Denardi Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 7 de fevereiro de 2018.
https://www.conjur.com.br/2018-fev-07/consultor-tributario-execucao-administrativa-tema-primeira-adi-tributaria-2018