O presente artigo tem como objetivo identificar o correto critério constitucional para repartição do ICMS – oriundo do Valor Adicionado Fiscal – em razão da geração, distribuição e consumo de energia elétrica, tendo como paradigma as usinas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira (RO).
Em atendimento às demandas energéticas previstas pelo Plano Decenal de Expansão de Energia Elétrica 2006/2015, uma série de ações e empreendimentos foram adotados e implantados para atender as projeções de crescimento econômico do país. A partir de então, estudos e propostas se sucederam para culminar na proposição atual das construções das usinas de Jirau e Santo Antônio: a primeira, localizada a 136 km, a montante de Porto Velho; e a segunda, a jusante da UHE Jirau, a aproximadamente 10 km de Porto Velho, ambas no Rio Madeira.
Nesse contexto geográfico, urge o seguinte enfrentamento jurídico: a parcela do valor adicionado fiscal do ICMS deve ficar exclusivamente para o município onde a energia é produzida (Porto Velho) ou deve ser adicionada e repartida para os demais municípios onde existe o consumo da energia elétrica?
A divergência situa-se ao definir os elementos espacial e temporal da obrigação tributária do ICMS incidente sobre energia elétrica: a) o critério da produção e, por isso, atribuir o VAF ao município onde localizados os geradores da usina hidrelétrica; (b) o critério do consumo e destinar o VAF ao Município de consumo de energia elétrica.
O art. 158 da Constituição da República determina a repartição, pelo Estado, da receita do ICMS com os municípios e estabelece, com precisão, o critério para se aferir o respectivo Valor Adicionado Fiscal-VAF.
A regra impõe aos Estados o dever de entregar aos municípios 25% da receita do ICMS, dos quais três quartos, no mínimo, deverão ser creditados na proporção do valor adicionado no território de cada municipalidade.
“Valor Adicionado Fiscal” nada mais é do que um indicador econômico-contábil que espelha o movimento econômico e, consequentemente, o potencial do município de gerar receitas públicas, utilizado pelo Estado para calcular o índice de participação municipal na repartição da receita do ICMS, calculado com base em declarações anuais apresentadas pelas empresas estabelecidas nos respectivos municípios.
Em outras palavras, é o instrumento constitucional utilizado pelas secretarias de Estado da Fazenda para apurar o índice de participação que cada município terá no movimento econômico estadual e, por consequência, no total da receita proveniente da arrecadação do ICMS.
Assim, considera-se pacífico que o critério para definir a quem pertence o valor adicionado fiscal relativo a uma operação ou prestação sujeita, em tese, à incidência do ICMS é, unicamente, espacial, ou seja, local onde se concretiza o fato gerador do imposto.
O art. 3º da LC 63/90 regulamentou a regra do art. 158, IV, e parágrafo único, da CF/88, que impõe ao Estado partilhar com os municípios 25% da receita do ICMS.
Observa-se que o caput e seu inciso primeiro apenas reproduzem o que já consta da norma constitucional. Já o parágrafo primeiro, inciso I, compatibiliza o cálculo do Valor Adicionado Fiscal com o princípio da não cumulatividade. Em linguagem objetiva, determina que seja computado somente o valor adicionado em cada município, pois do “valor das mercadorias saídas, acrescido do valor das prestações de serviços, no seu território” será “deduzido o valor das mercadorias entradas, em cada ano civil”.
Como sabido, salvo algumas exceções contempladas em lei, o ICMS é imposto plurifásico, que incide em toda cadeia de circulação da mercadoria em direção ao consumo. Para evitar-se a incidência em cascata, a CF/88 estruturou a sistemática do ICMS sobre o princípio da não cumulatividade, de modo que o imposto incide sobre o valor total da operação ou prestação, deduzido do crédito de entrada decorrente da incidência do tributo na fase imediatamente anterior da cadeia econômica. Isso quer dizer que o imposto incide, somente, sobre o valor adicionado em cada operação ou prestação sujeita ao ICMS.
Portanto, cada município somente poderá computar no cálculo do seu respectivo valor adicionado o montante líquido da operação ocorrida em seu território, vale dizer, deve deduzir do valor de saída da mercadoria ou do preço do serviço prestado o valor das mercadorias entradas e dos serviços utilizados.
O parágrafo segundo, inciso I, determina que sejam computados no cálculo do VAF todas as operações e prestações que constituam fato gerador do imposto, ainda que o pagamento tenha sido antecipado, diferido, ou o crédito diferido, reduzido ou excluído, em virtude de isenções ou outros benefícios fiscais.
A regra tem o objetivo claro de impedir prejuízo aos municípios por força da política fiscal adotada pelo Estado em que situados. Já o inciso II estabelece regra semelhante para os casos de imunidade. Assim, se o Estado concede isenção, que é a dispensa legal do pagamento de tributo, ou se verifica uma hipótese de imunidade, o município onde ocorre a operação ou prestação isenta ou imune não deixa de tê-la acrescida, proporcionalmente, ao seu VAF.
A norma não autoriza que seja computada como receita a operação imune ou isenta, até porque, nesses casos, receita não há por força da dispensa do pagamento ou da não incidência constitucional. Apenas determina que o valor da operação, ou prestação, seja computado na aferição do VAF da respectiva municipalidade.
Isso quer dizer que o valor a ser partilhado é apenas 25% do que foi arrecadado a título de ICMS, não podendo, logicamente, ser considerada a isenção ou a imunidade, que não geram receita. Mas, na hora de partilhar o montante arrecadado, o município onde ocorreu a operação isenta ou imune terá acrescido seu percentual por força dessas operações.
Em suma, pode-se concluir que a legislação complementar – e não poderia ser diferente – reafirma a adoção do critério espacial como determinante para o cálculo do Valor Adicionado Fiscal de cada município.
Até aqui analisamos de modo genérico o VAF na norma constitucional e na lei complementar específica. Cabe, porém, descer à análise específica da energia elétrica que é o centro da disputa entre os municípios.
A Constituição da República catalogou a energia elétrica como mercadoria – bem móvel dotado de valor econômico –, passível, portanto, de incidência do ICMS. Ademais, por opção política, estruturou o ICMS incidente sobre energia elétrica de modo a beneficiar os Estados consumidores em detrimento dos Estados produtores.
Com efeito, o art. 155, § 2º, X, “b”, da CF/88 evidencia essa opção quando declara a não incidência do imposto sobre as operações interestaduais:
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;
§ 2.º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
X – não incidirá: b) sobre operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica;
§ 3º À exceção dos impostos de que tratam o inciso II do caput deste artigo e o art. 153, I e II, nenhum outro imposto poderá incidir sobre operações relativas a energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do País.
A doutrina majoritária via, no dispositivo, uma regra de imunidade a beneficiar o consumidor, que poderia adquirir energia em outra unidade da Federação sem o recolhimento do imposto, barateando custos de produção.
A professora Misabel Abreu Machado Derzi, ao examinar a regra de imunidade, assentou o seu fundamento na necessidade de redução de custos empresariais, verbis:
Pode-se afirmar que, sem sombra de dúvida, a razão fundante e principal da imunidade radica na necessidade de, em especial em economia instável e inflacionária como a nossa, reduzir custos – insumos que repercurtem diretamente sobre os agentes industriais e comerciais. (“ICMS – A imunidade das Operações Interestaduais com Petróleo e seus Derivados, Combustíveis Líquidos e Gasosos. A Irrelevância na Espécie do Conceito de Consumidor Final” in Direito Tributário Atual – Pareceres , São Paulo: Forense, p.159)
Ocorre que o legislador complementar restringiu a não incidência do ICMS nas operações interestaduais apenas aos casos em que a energia elétrica destina-se à comercialização ou industrialização. Nos demais, ou seja, quando destinada a uso e consumo, determinou a incidência do imposto pela entrada, responsabilizando o fornecedor pela retenção antecipada em regime de substituição tributária.
Com todas as vênias, o 3º, III, da LC 87/96 padece de flagrante inconstitucionalidade, pois estabelece restrição não prevista na regra de imunidade o que é vedado. Nada obstante a firme posição doutrinária – de que a imunidade aplica-se a toda operação interestadual com energia elétrica e atende aos interesses do consumidor – a Suprema Corte adotou orientação contrária, vencido, isoladamente, o ministro Marco Aurélio.
No Recurso Extraordinário 198.088-5, julgado em 17 de maio de 2000, o Supremo Tribunal Federal deu interpretação restrita à regra do art. 155, § 2º, inciso X, “b”, da CF/88, ao concluir que a norma desonerativa não foi instituída em benefício do consumidor final, mas do Estado de destino das mercadorias, a quem caberá a integralidade do ICMS sobre elas incidentes, desde a remessa até o consumo.
Nesse julgamento, a Suprema Corte afirmou, com todas as letras, que a tributação da energia elétrica, no caso de operações interestaduais, será realizada exclusivamente no destino, revelando a clara opção do constituinte originário em aquinhoar os Estados consumidores em detrimento dos produtores.
Em resumo, o delineamento constitucional do ICMS incidente sobre a energia elétrica revela nítida opção política do constituinte pela tributação no destino, onde situado o consumidor final.
Torna-se tarefa não muito complexa aferir os elementos temporal e espacial da hipótese de incidência do ICMS incidente sobre operações com energia.
O consumo de energia elétrica pressupõe, logicamente, sua produção – no caso brasileiro, basicamente, por meio de hidrelétricas, termelétricas e usinas nucleares, além de algumas experiências localizadas na exploração da energia eólica e solar – e sua distribuição, quase sempre por concessionárias e permissionárias de serviço púbico.
As etapas do ciclo econômico da energia elétrica – que abrangem a produção, a distribuição e o consumo – estão absolutamente interligadas, até mesmo em razão da natureza desse bem incorpóreo, que:
(a) não se sujeita à estocagem;
(b) é de consumo imediato; e
(c) uma vez lançado no sistema elétrico, não pode ter sua origem identificada.
Em razão dessas características, o nosso sistema tributário adotou como elemento temporal da hipótese de incidência do ICMS o consumo, vale dizer, o momento em que a energia, saindo da rede elétrica, é utilizada pelo estabelecimento consumidor.
Não obstante tenha a opção recaído sobre a etapa do consumo, a base de cálculo do ICMS nas operações com energia elétrica leva em conta toda a cadeia, ou seja, todos os custos, desde a produção até o consumo, justamente porque as etapas anteriores são indissociáveis. Roque Antônio Carrazza sustenta:
(…) o ICMS – Energia Elétrica levará em conta todas as fases anteriores que tornaram possível o consumo da energia elétrica. Estas fases anteriores, entretanto, não são dotadas de autonomia apta a ensejar incidências isoladas, mas apenas uma, tendo por único sujeito passivo o consumidor final. O elo existente entre a usina geradora e a empresa distribuidora não tipifica, para fins fiscais, operação autônoma de circulação de energia elétrica. E, na verdade, o meio necessário à prestação de um único serviço público, ao consumidor final, abrindo espaço a cobrança, junto a este, de um único ICMS.
……………………………………………………………………….Não desconhecemos que cada etapa deste item acrescenta riquezas novas, isto é, aumenta o custo da energia elétrica fornecida ao consumidor final. Mas isto só repercute na base de cálculo do ICMS, que será a teor do dispositivo constitucional transitório em, o preço então praticado na operação final. Com isto estamos enfatizando que tal tributação, em face das peculiaridades que cercam o fornecimento de energia elétrica, só é juridicamente possível no momento em que a energia elétrica, por força de relação contratual, sai do estabelecimento do fornecedor, sendo consumida. (ICMS. 14ª ed., São Paulo: Malheiros, 2009, p. 268-269)
Não há, portanto, controvérsia doutrinária sobre o elemento temporal da hipótese de incidência do ICMS incidente sobre energia elétrica, fincado no critério do consumo.
Definido o consumo como elemento temporal da obrigação tributária do ICMS incidente sobre energia elétrica, o aspecto espacial, por dedução lógica, é o local onde consumida a energia, vale dizer, onde, saindo da rede elétrica, ingressa no estabelecimento consumidor, transformando-se em calor, frio, movimento etc.
Conclui-se: (a) o critério constitucional para definir a quem pertence o valor adicionado fiscal relativo a uma operação ou prestação sujeita, em tese, à incidência do ICMS não é, unicamente, espacial, ou seja, local onde se concretiza o fato gerador do imposto;
(b) a legislação complementar reafirma a adoção do critério espacial como determinante para o cálculo do Valor Adicionado Fiscal de cada município;
(c) o desenho constitucional do ICMS incidente sobre a energia revela nítida opção política do constituinte pela tributação no destino, onde situado o consumidor final;
(d) os impostos sobre energia elétrica sempre incidiram, segundo a nossa tradição jurídica, sobre o consumo, o que não é diferente com o ICMS;
(e) por fim, o consumo é o elemento temporal da obrigação tributária do ICMS incidente sobre energia elétrica, e que o aspecto espacial, por dedução lógica, é o local onde consumida a energia.
Portanto, a produção e a distribuição de energia elétrica não configuram fato gerador do ICMS, mas tão somente o consumo da energia gerada e transmitida.
Se não geram receita ao Estado ou não constituem a hipótese de incidência tributária, logicamente, a destinação do repasse constitucional do ICMS não deve se restringir ao município da geração (Porto Velho) de energia.
Por Breno de Paula.
Breno de Paula é advogado tributarista, professor de Direito Tributário da Universidade Federal de Rondônia e presidente da Comissão Nacional de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.
Revista Consultor Jurídico, 13 de janeiro de 2018.
https://www.conjur.com.br/2018-jan-13/breno-paula-hidreletricas-debate-reparticao-icms