1. Primeira fase
Na redação original da Lei 10.168/2000, a Cide-royalties era devida “pela pessoa jurídica detentora de licença de uso ou adquirente de conhecimentos tecnológicos, bem como aquela signatária de contratos que impliquem transferência de tecnologia, firmados com residentes ou domiciliados no exterior” (artigo 2º, caput). Por contratos de transferência de tecnologia, entendiam-se os “relativos à exploração de patentes ou de uso de marcas e os de fornecimento de tecnologia e prestação de assistência técnica” (parágrafo 1º).
O primeiro item da enumeração constante do caput, somado à técnica de enumeração alternativa (“ou… bem como”), podia levar à conclusão apressada de que o tributo incidia sobre a remuneração por licença de uso ou comercialização de software, ainda que sem transferência de tecnologia.
Essa leitura ampliativa contrariaria, contudo, a própria razão de ser da contribuição. Trata-se de tributar as importações de know how (tecnologia, marcas, patentes e serviços de assistência técnica) a fim de, com a receita assim obtida, financiar a produção desse conhecimento no Brasil, de maneira a mitigar a nossa dependência externa na matéria.
O pagamento por licenças de software sem transferência de tecnologia não entra nesse contexto, e por isso mesmo não foi contemplado no artigo 8º do Decreto 3.949/2001, que regulamentou o comando legal e fez uma lista taxativa dos fatos tributáveis: (i) fornecimento de tecnologia; (ii) prestação de assistência técnica (serviços de assistência técnica ou serviços técnicos especializados), (iii) cessão e licença de uso de marcas; (iv) cessão e licença de exploração de patentes. Ademais, dispôs artigo que os contratos em questão devem ser registrados no Inpi, o que só é obrigatório para o licenciamento de software com transferência de tecnologia (Lei 9.609/98, artigo 11; Lei 9.279/96, artigo 211).
Ao esclarecer, na linha da teleologia da contribuição, o aspecto material da sua hipótese de incidência, o decreto há de ser respeitado pela administração, que não pode ignorar as suas próprias normas nem frustrar a confiança legítima que elas infundem no particular. Embora sejam passíveis de contestação por este, com base no princípio da legalidade ou em outro fundamento, os decretos devem ser rigorosamente observados pelo Executivo, a quem não é dado impugnar em juízo um ato seu (esquizofrenia institucional).
2. Segunda fase
A Lei 10.322/2001 alterou a redação do parágrafo 2º do artigo 2º da Lei 10.168/2000 para ampliar o fato gerador da Cide, acrescentando-lhe os serviços técnicos e de assistência administrativa e similares (antes a menção era apenas aos serviços de assistência técnica) e os royalties a qualquer título — e não mais somente os gerados pelas figuras listadas no parágrafo 1º.
O novo fato gerador foi explicitado no artigo 10 do Decreto 4.195/2002, sempre em lista taxativa da qual não continuam a não constar os rendimentos em exame: (i) fornecimento de tecnologia; (ii) prestação de assistência técnica (serviços de assistência técnica ou serviços técnicos especializados); (iii) serviços técnicos e de assistência administrativa e semelhantes; (iv) cessão e licença de exploração de marcas; (v) cessão e licença de exploração de patentes.
A intributabilidade da licença de software sem repasse de tecnologia permanece, não só pelo silêncio do decreto, que vincula o Fisco, mas também por falta de subsunção mesmo ao fato gerador alargado, pois os pagamentos em tela não são royalties a nenhum título — pelo menos quando destinados ao próprio criador do programa, seja ele uma pessoa física ou jurídica.
O conceito de royalties é dado pelo artigo 22 da Lei 4.506/64, que trata do Imposto de Renda: rendimentos decorrentes do uso, da fruição ou da exploração de direitos, como (i) o de colher ou extrair recursos vegetais, inclusive florestais; (ii) o de pesquisar e extrair recursos minerais; (iii) os relativos a invenções, processos e fórmulas de fabricação ou a marcas de indústria e comércio; e (iv) os relativos a direitos autorais, salvo quando percebidos pelo autor ou criador do bem ou da obra.
A relevância dessa definição para a Cide-royalties é atestada pelo artigo 3º, parágrafo único, da Lei 10.168/2000, segundo o qual “a contribuição de que trata esta Lei sujeita-se (…), subsidiariamente e no que couber, às disposições da legislação do imposto de renda, especialmente” — mas não exclusivamente — “quanto a penalidades e demais acréscimos aplicáveis”.
A análise do citado artigo 22 evidencia o acerto da limitação feita pelo artigo 10 do Decreto 4.195/2002, que — partindo da expressão “royalties a qualquer título”, inserida pela Lei 10.322/2001 — elabora lista fechada dos contratos geradores dos royalties tributáveis. Deveras, sem tal delimitação, a Cide gravaria as remessas originárias do Brasil pela exploração de florestas ou minas, que são royalties para todos os fins, mas não guardam a mais remota relação com o Programa de Estímulo à Interação Universidade-Empresa para o Apoio à Inovação, por ela financiado.
Se o corte é válido quanto a rendimentos que, em princípio, recairiam no conceito legal de royalties (caso das florestas e minas), muito mais o é quanto aos que jamais se enquadraram nele, como os direitos autorais pagos ao próprio autor do bem ou da obra (Lei 4.506/64, artigo 22, alínea d). A sua exclusão da noção de royalties é confirmada pelo artigo 17, parágrafo 1º, inciso I, alínea d, da IN/SRF 252/2002, mantido pelo comando de mesmo número da IN/RFB 1.455/2014, que a substituiu.
Em suma: os direitos de autor, quando pagos a este, não se subsumem ao artigo 2º da Lei 10.168/2000 (mesmo após a Lei 10.332/2001), não se sujeitando à Cide-royalties. Quando pagos a terceiros, embora sejam royalties (enquadrando-se no comando legal), são intributáveis porque omitidos no decreto regulamentador.
Irrelevante para o desate da matéria o artigo 12 da Convenção Modelo da OCDE, que dá ao termo royalty uma acepção mais ampla, para abranger os direitos autorais em geral. Primeiro porque se cuida de simples modelo, a ser livremente adaptado pelos países na formulação de cada tratado específico. Segundo porque o Brasil não é membro da OCDE. Terceiro porque as convenções brasileiras contra a dupla tributação internacional abrangem apenas o Imposto de Renda (pessoas físicas ou jurídicas) e a CSLL, mas não a Cide-royalties. E quarto porque os tratados contra a dupla tributação, na visão unânime da doutrina brasileira e estrangeira, têm somente efeito negativo — afastar ou mitigar tributos que sejam devidos segundo a lei doméstica (e esta não autoriza a incidência na situação em análise, como já se viu) —, não legitimando per se nenhuma exigência tributária.
O que cumpre é perquirir se a remuneração das licenças de softwareconstitui direito de autor (e não royalties a qualquer título), pois esse é um dos pilares do raciocínio aqui desenvolvido. A resposta está no artigo 2º da Lei 9.609/98 (Lei do Software): “O regime de proteção à propriedade intelectual de programa de computador é o conferido às obras literárias pela legislação de direitos autorais e conexos vigente no País”. Reitera-o o artigo 7º, inciso XII, da Lei 9.610/98 (Lei dos Direitos Autorais), que define como “obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como (…) os programas de computador”.
A propriedade intelectual e a propriedade industrial sujeitam-se, é claro, a regimes jurídicos diversos. A Lei 9.279/96, que trata desta última, é expressa no sentido de que os softwares não são patenteáveis (artigo 10, inciso V) ou passíveis de registro como marcas, vez que não podem ser tidos como sinais visualmente perceptíveis (artigo 122) — o que, en passant, obsta a qualificação das remessas por licenças de software como royalties por marcas ou patentes (artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei 10.168/2000), de que aliás nunca se cogitou.
No mais, as patentes (Lei 9.279/96, artigo 19) e as marcas (artigo 129) devem ser registradas no Inpi, ao passo que a proteção dos direitos de autor (Lei 9.610/98, artigo 18) e dos programas de computador (Lei 9.609/98, artigo 2º, parágrafo 3º), que comungam dessa natureza, independe de registro, embora esses últimos possam, a critério do titular, ser registrados no órgão (Lei 9.609/98, artigo 3º; Decreto 2.556/98, artigo 1º).
Também o Regulamento do Imposto de Renda trata em separado os direitos autorais (artigo 709) e os royalties (artigo 710), sendo ainda de notar que apenas estes são sujeitos aos limites quantitativos (5% da receita líquida das vendas do produto) e formais (registro no Inpi) de dedutibilidade postos pelo artigo 355.
Por fim — e isso é importante —, o artigo 3º da Lei do Software evidencia que o autor deste pode ser tanto pessoa física como pessoa jurídica.
3. Terceira fase
O artigo 20 da Lei 11.452/2007 inseriu o parágrafo 1º-A ao artigo 2º da Lei 10.168/2000, atestando que “a contribuição de que trata este artigo não incide sobre a remuneração pela licença de uso ou de direitos de comercialização ou distribuição de programa de computador, salvo quando envolverem a transferência da correspondente tecnologia”. Na forma do artigo 21, o dispositivo deveria produzir efeitos a partir de 1º de janeiro de 2006.
A Lei 11.452/2007 resulta da conversão da Medida Provisória 328, de 1º/11/2006, que nada dizia sobre Cide-royalties. Daí se conclui que o artigo 20 adveio de emenda parlamentar e, assim, não teve vigência anterior à data de publicação da lei de conversão (o que só ocorreu com os sete artigos originais da MP).
Em suma: o parágrafo 1º-A entrou em vigor em 27/2/2007 (data de publicação da Lei 11.452/2007), mas pretende gerar efeitos desde 1º/1/2006. Trata-se, claro está, de dispositivo qualificado pelo próprio legislador como expressamente interpretativo, uma das raras hipóteses em que a retroação tem lugar, e a única, dentre as listadas no artigo 106 do CTN, de que se pode cogitar na espécie (pois as outras tratam de sanções).
A admissibilidade de leis interpretativas e a sua sindicabilidade judicial são pontos pacíficos na jurisprudência dos tribunais superiores (STF, Pleno, ADI 605 MC/DF, relator ministro Celso de Mello, DJ 5/5/1993; STJ, Corte Especial, AI nos EREsp. 644.736/PE, relator ministro Teori Zavascki, DJ 27/8/2007).
A pergunta é: ante uma lei interpretativa, pode o Congresso modular a sua retroação, limitando-a a uma parte do período de vigência da lei interpretada? A resposta até pode ser positiva, desde que um terceiro diploma, editado entre a lei interpretada e a interpretativa, tenha interagido com a primeira, alterando-lhe o sentido desde então — ou melhor, tendo formado com o texto primitivo uma nova norma. Desnecessário lembrar que lei e norma são categorias distintas, decorrendo a segunda da interpretação da primeira, em si mesma e em sua necessária relação com o ordenamento circunstante.
Outra situação que comporta o corte temporal pela lei interpretativa é a radical alteração dos valores e consensos sociais desde a edição da lei interpretada, o que vale principalmente para aquelas de longuíssima duração (décadas ou mesmo séculos).
Nada disso ocorreu na situação em estudo, tendo mediado pouco mais de seis anos entre as leis 10.168/2000 e 11.452/2007 e não tendo sobrevindo em 1º/1/2006, a data pinçada pelo legislador, nenhuma alteração no regime jurídico dos softwares ou no conceito legal de royalties. Nesse quadro, a modulação legislativa é irrazoável e arbitrária, não podendo prevalecer.
Não se trata de invalidar o artigo 21 da Lei 11.452/2007, mas apenas de declarar a aplicabilidade à espécie do artigo 106, inciso I, do CTN — a retroação até 1º/1/2006 ficando respaldada em ambos os dispositivos, e aquela até a entrada em vigor do diploma interpretado escorando-se apenas no segundo.
Em suma, no precedente do STJ acima invocado, tratou-se de afastar o caráter interpretativo da lei e repelir a sua retroação. Aqui se trata de reconhecê-lo e de aplicar a retroatividade em toda a extensão devida. Em ambos os casos, o Judiciário tem uma palavra decisiva a dizer.
A secção temporal baseada unicamente em critérios de conveniência e oportunidade seria válida no âmbito de remissão tributária. Mas não é disso que se trata, seja porque a regra veiculada no parágrafo 1º-A já decorria do plexo normativo anterior, como se viu nos itens 1 e 2, seja porque a remissão exigiria lei específica (CF, artigo 150, parágrafo 6º) e prévia estimativa do impacto orçamentário-financeiro (Lei de Responsabilidade Fiscal, artigo 14), requisitos ambos inobservados in casu.
Sabe-se que recentemente a 2ª Turma do STJ adotou entendimento diverso, sustentando a incidência do tributo antes de 1º/1/2006 e qualificando de isenção a não incidência do parágrafo 1º-A (REsp. 1.642.249/SP e 1.650.115/SP, relator ministro Mauro Campbell Marques, DJe de 23/10/2017).
Quanto ao primeiro ponto, sustentam os acórdãos que, embora a Lei do Software defina que só há transferência de tecnologia quando ocorre a sua absorção pelo licenciado (artigo 11, parágrafo único), a correspondência não seria válida no campo da Cide, já que o artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei 10.168/2000 dispõe que uma das formas de transferência é o fornecimento. E, tomando esse último termo em sua acepção vulgar, advertem que, “para ser comercializada, a tecnologia precisa primeiramente ser de algum modo fornecida a quem a comercializará” (entrega de cópia do programa). Assim, embora não sejam royalties, mas direitos de autor, os pagamentos ao criador do programa são tributáveis — eis a conclusão da corte.
Já a “isenção” do parágrafo 1º-A — e os acórdãos não explicam como uma isenção pode retroagir sem se transformar em remissão ou regra interpretativa —, embora use a mesma expressão (“transferência de tecnologia”) seria limitada aos casos em que não há a sua absorção pela outra parte.
A especiosa diferenciação, sem a qual se teria de admitir a inutilidade do comando — se toda licença pressupõe transferência de tecnologia, pois uma de suas formas é o simples fornecimento, que situações seriam contempladas pela não incidência agora positivada? —, busca apoio no vocábulo “correspondente”, constante do novel dispositivo, sem explicar minimamente como ele seria capaz de modificar o sentido do termo “transferência”, a que se liga.
Ter-se-ia, então, uma isenção que nada isenta. A conclusão adequada, segundo nos parece, é outra. O dispositivo é, sim, expletivo, mas pela razão oposta: porque só faz reforçar a norma preexistente — tributação da licença que transfere tecnologia e não tributação da que não o faz.
4. Conclusão
A despeito dos acórdãos da 2ª Seção do STJ, temos por certo que:
- a Cide-royalties não gravava as licenças de uso e venda de softwares sem transferência de tecnologia na redação original da Lei 10.168/2000;
- a intributabilidade se manteve após a Lei 10.322/2001, seja em relação aos pagamentos ao autor do programa (que são direitos autorais, não royalties), seja em relação aos pagamentos a terceiros (por omissão do decreto regulamentador); e
- o parágrafo 1º-A do artigo 2º da Lei 10.168/2000, introduzido pela Lei 11.452/2007 tem caráter interpretativo, devendo retroagir até a data de entrada em vigor do primeiro diploma.
A matéria segue em aberto, exigindo pronunciamentos da 1ª Turma e da 1ª Seção.
Por Igor Mauler Santiago
Igor Mauler Santiago é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.
Revista Consultor Jurídico, 15 de novembro de 2017
https://www.conjur.com.br/2017-nov-15/cide-nunca-onerou-licencas-software-transferencia-tecnologia